sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Duas noites em meio a chuva


Várias noites em vão. Acordado olhando para o teto, na busca incessante de uma palavra que o definisse melhor. Ficou em vão sonhando ser menos do que esperavam, menos do que se via, e mais estranho do que imaginava. Sempre avulso dentro de uma ou duas janelas. Ficou inerte como aquela mancha na parede, aquela mancha dágua da calha que escorria depois de muito usada. Que transbordava. Várias noites em torno de um desenho de uma boca que nunca, nunca falava, mas que dentro do seu travesseiro quase andava e quase estremecia de raiva ao vê-lo. Era muito vazio dentro do seu espelho. Era muito vago a sua altura. Era quase um desespero, se não fosse a gota de chuva que esvaia tensa lenta e ritmíca a sua lentidão de existir. Porque no fundo era lento.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O fim do infernal astral do concreto

Paciência. Dom inato. Palavra estranha. Corpo fora do tempo. Imagino duas coisas distintas quando penso no peso da palavra que nem de longe me reconhece ou ajuda. Coisa que sempre me escapa entre os dedos. E antes fosse somente ela. Mas com ela todos os seus significados e todos os seus parentes. Fica sempre um incidente de caráter cômico ou desajustado feito parafuso mal ajeitado nos lugares por onde minha vértebra se movimenta. Movimento de ossos em dias de chuva. Apenas as pregas dos olhos se mantém intactas. Todas as outras vasilhas, linhas, pesos já se corromperam em proféticos cafés da manhã em que o mundo acordará moderno casual e sem mim.
E todas essas pequenas palavras ficam voando dentro de xícaras de café que jamais se preenchem, em corpos que nunca se entendem ou se encontram, em extensos discursos vazios diante de uma câmera estática. Dom inato. Esse da paciência de ver o mundo girar e a roda correr e o céu clarear e escurecer. Diante de mim as coisas ficam mais tensas, largas como se fossem engolir toda e qualquer sensação. Apenas um silêncio que recobre uma maré de pessoas diferentes mas que usam a mesma escova de dentes. Nada poético o cinza felpudo do céu nessa tarde. A cidade parece se derramar sobre a loucura dos seus transeuntes, dos seus parasitas que habitam sem conhecimento de causa seu corpo marcado. Que sem licença tatuam, erguem piercings e bolas de silicone sobre a sua pele, transmutando-a num inglês hype de merda. Ou numa toy art gigantesca e disforme. E a paciência é um dom inato. Nem sei se é dom,essa sina de esperar ansiosamente contando os dias em calendários distintos, calculando em porcentagem o aproveitamento dos dias, deixando o gerúndio no final de cada escapamento que vaza da boca numa busca angustiada por um novo dono. E assim se passam as marés de tempo entre dentes sangrados e desejos adormecidos. Entre xícaras de café e vodka, sobre conversas vazias em mesas de bar, não há onde se encaixar, algum sonho grande demais para a cabeça ainda há de me quebrar o pescoço. Um dia acordo torto apenas com plenas formigas a caminhar na minha ossatura magra, cheia de cinzeiros para capítulos alheios. Mas toda essa conversa é só tédio pela chuva que banha a cidade sem se decidir entre o dilúvio e a banheira. São Paulo é a casa dos entediados e dos medíocres, deve ser por isso que não vejo em nenhum outro lugar, que não me reconheça em nenhum outro ar. É meu espelho torturado, são as ruas quebradas e sujas, são os bares em sobrados estranhos, são pessoas que se esbarram sem se ver,são pessoas que trepam sem se conhecer, são todas as coisas que intermediam o fim da vida e o principio da alucinação. É toda essa cauda que se arrasta entre as poças de água.

Paciência é coisa que essa cidade não conhece e eu como boa parte de seus músculos de ferro e concreto também não. Desconheço o sentido dessa espera, por mais que espere. E ela, minha doce e maldita metrópole por vezes me repele e me abraça em noites de silêncio entorpecido. Quisera eu fazer um ato de doçura no seu aniversário, mas pra variar você, ranzinza, não permite e tira nesgas do céu com cuspes densos e lívidos de chuva.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A deriva

O meu coração se dilacera numa espera muda de um milagre. Na concepção católica e prosaica da palavra. A noite se desfaz em passadas largas e em desejos embevecidos. Morro na altura máxima de uma poema. Fico entregue a palavras. Mas eu quero mais que palavras. A morte já se postergou nos meus arredores, até lambeu o vidro da minha janela. Mas apenas de passagem perguntando por um outro alguém. Sem a sombra. Sem a sombra ela ficou ali esperando uma resposta minha. Mas eu não soube dar. Sou péssima para indicações de nomes de ruas e coisas do tipo. Sempre fui. E sempre fui afoita. E o meu coração se despedaça assim em silêncio. Não dá pra saber quando é de verdade. Ele mente o tempo todo. É ator. Se imagina em poses alegres, a beira da noite, se corta em lágrimas. Me faz cair. Alguma coisa fica inaudita. A noite corroi aquela sensação de pertencer a algo? Não. Não. É o contrário. Ela traz a única preenchimento possível. Mesmo que com prosa barata. E com gordura nos dedos. Mesmo que a boca lave a carne de palavras, invente mil histórias passionais. Por dentro, cá por dentro só existe o refúgio silêncio pra tudo que não encontrou seu lugar no mundo. Aqui fica resquício de história, personagem sem enredo esperando a hora. A hora da lua cair da cama. A hora em que o corpo pende da janela num novo vício e se finca alterado numa borda de cama a suspirar. O teor romântico das minhas linhas só é superada pela glória ensandecida das minhas entrelinhas.
Morte aos papagaios

Também é palavra estranha, que não desaba de cima do muro. Fica envolta numa camada de neblina que não dispersa. É palavra a toa que transita na indiferença. Que fica muda quando não quer machucar. Que inunda quando deixa abraçar. Que mata quando afia os dentes. Palavra imunda. Que por vezes dá crises de ódio, daquelas de implodir ponte com ninho de passarinhos, cachorros e mendigos. Também, é muita covardia. “Eu te amo, eu também.” “Como pizza, eu também.” Até parece conversa de papagaio, coisa de gente sem vocabulário, que fica pendendo na palavra da boca de outrem, agarrada no último pingo de saliva, sem nada acrescer. “Tenho saudades, eu também.” “Comprei um cachorro manco, eu também.” Chega a dar corpo a irritação. Dá vontade de mandar ler Paulo coelho.

Também até comove, quando o peito tá fraco de amor, ela até dissolve uma má impressão, mas quando a boca fecha e o olho abre fica a sensação patética de que não convém a ninguém toda essa lenga -lenga de amor, e ai vem aquela sensação mongolóide de autodestruição por cirrose na mesa do bar. Cercada de pessoas que não entendem nada de gramática e que não sabem como uma palavra pode irritar tanto alguém.
Pág. 45 do diário de um ogro

O tédio o havia corroído até as pernas. O osso fundo da coxa chiava. A chuva de janeiro caia incansável, dando seus murros sobre os telhados e os frágeis guarda- chuvas de listras. E dentro da sua cabeça, encoberta por um cobertor, apenas um pensamento: será que foi isso? Revirava-se sem sono na cama já marcada de suor. As paredes cheias de marcas de dedos. Uma inquietude chiava dentro de seus ossos magros. Nada até o momento o havia feito notar. Ninguém o havia acertado sem querer com tanta destreza o queixo. Ele sempre foi duro e áspero, nem um pouco sutil em suas colocações, basicamente uma máquina de demolição sem muito freio. Era só abrir a boca e pronto. Se não era isso, vinha-lhe o silêncio incômodo de quem nada tem ou nada quer dizer. Mas aquela mulher que ele amava tanto, o havia chocado um pouco. Será que foi isso? Que todas as suas pretensas qualidades ficavam soterradas diante do olhar dela devido a uma rabugice dele? Será que foi isso? Ela nunca havia dito nada. E ele ficou esse tempo todo achando que um OVNI havia abduzido seu coração ou que ela simplesmente desfazia dele pelo simples fato de ele ainda amá-la. Os ossos do pulso estralavam num desconforto abominável. Havia algo dentro de si que queria gritar. Ai ele lembrou de todas as vezes que estourou por nada, por um lápis, por uma palavra, por todas as vezes que foi chato, causando um atrito sem razão. Das vezes que impediu que ela demonstrasse seu carinho por chatice, das vezes que foi covarde. Vieram a sua cabeça milhares de ações estúpidas. Ele levantou da cama com ar doente. Ficou olhando ao seu redor e uma vontade absurda de esmurrar algo lhe veio aos braços. Queria dizer que era diferente agora, mas ela sabia que não. Ele ainda era um chato de galocha, um velho de trezentos e setenta e oito anos num corpo de vinte e cinco. E desejou que um raio caísse sobre sua cama. Que houvesse uma doença terminal incubada em seu corpo. Mas era pra variar dramático demais. Ele não havia mudado em três anos. Como agora faria tudo diferente em um ano só? Em um mês? Em um dia? Os ossos rangiam chatos. Até seus ossos eram chatos. E se irritou. Desejou explodir a casa. O tédio deu lugar a uma inquietação amarga. E o será já tomava caráter de evidência. Qualquer um dos outros amores dela com certeza o superariam e muito, pelo simples fato de que não eram amargos como um pedaço de carvalho embebido em pinga. Ele podia ser o mais lírico, o mais sonhador, o mais criativo, mas seria sempre o mala que estaria rechaçando as coisas que não pertencessem ao seu mundinho. Seria sempre um espinho na palma suave daquela mão. E pra sempre teve certeza que ele seria a única pessoa no mundo que ela jamais amaria.