sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Apenas Ir

E eu peço aval para ir embora. Apenas desaparecer num mar de cicatrizes frescas. Cada passo dado parece uma incerteza flácida. Assim mesmo permaneço entre as flores. Alheio frescor. E eu peço em vão, que não me vire assim a rua, as costas. E eu peço em vão que se cale.
É tão indelicado o meu modo de andar. Sinto chamas escarlates dentro do peito e assim mesmo, no mesmo tom, a cabeça se esmaga entre pensamentos turvos. Momentos travados, sem sair do lugar.
E eu peço aval para ir embora.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Enganos ou o pessimismo criou braços e começou a me pregar peças

Eu sempre atendo o telefone e é engano. Recebo mensagens lindas que não me pertencem. Porque dar feliz aniversário um mês antes do calendário? Um engano, um terrível engano, que inflava meu ego e me dava conforto. Mensagens no meio da noite inflando meu ego, quase um gozo. Mas era um engano, como tudo. E nem tenho como avisar “ hei colega, é o número errado”, porque a filha da mãe não deixa o número, nem o nome. Apenas um pretexto para um sonho. Apenas uma palavra que me causa muitas memórias. Ou o destino existe e quer me convencer disso ou existe uma coincidência megalomaníaca rolando por aqui. E pra ser bem sincera, não creio em nenhuma das duas. Acredito, no humor mórbido de alguém que resolveu pegar meu número pra cristo ou Judas (depende da freguesia). O fato é que nunca sou a pessoa certa. Ou às vezes sou certa demais. Tenho é que tocar o puteiro, como gentilmente me aconselham alguns dedicados amigos. E talvez aí, as coisas tomem um rumo mais comum. Embora comum, não seja um adjetivo muito utilizado no meu cotidiano estranho. Cheio de pessoas bizarras, histórias medonhas e gargalhadas no patamar da escada. De novo. O telefone vibra, anunciando uma mensagem que vai me tirar o sono. E lá vamos nós. Eu poderia pensar numa lista de pessoas. Mas que se dane, eu sou sempre a pessoa errada. Aquela que você enche de adjetivos lindos na frente da mãe e de “hein” “hã” nas costas da namorada. Pois é, a lista de pessoas erradas que eu fui é grande. Preencheria o vale do Anhangabaú com tranqüilidade. E daria aval pra minha internação por personalidades múltiplas. Pois é, ainda consigo montar meu próprio time de futebol. Só comigo. De novo. O telefone. ....eu vou jogar essa droga de aparelho dentro da privada e quero ver alguém me achar nesse mundo. E ficar tirando um sarro da minha cara. As pessoas só te respeitam quando você sai correndo de casa de pijamas á uma da manhã com uma faca e tenta fatiar o vizinho. Se eu sair correndo de pijamas alguém avisa pra essa criatura que eu sou perigosa? Que eu tenho raiva e babo igualzinho demente de filme? Será que alguém avisa pra essa criatura se identificar ou parar de me encher a cabeça de pensamentos? Porque eu sou paranóica e uma hora a minha tampa estoura. E nessa hora, não ache estranho receber um telefonema meu as três da manhã perguntando “ alguém quer sair pra dar uma volta?” “ hein?” “ não é o 9837 -1939?” “Não...cacete..” “ah, desculpa, foi engano...”

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

The Yes boy

Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Ele disse sim para tudo. Para as multas, advertências, incongruências, convites, piadas, ressacas, mulheres, deveres, empregos, senzalas, engarrafamentos, impostos, tendências, ausências. Concordou com tudo. Até mesmo se lhe agendassem a data da morte, diria sim. O que deveria comer, como deveria se sentar, onde deveria ir, o que era conveniente e o que não era de dizer. De sentir. As formas de amar, as posições, a minutagem, os filmes da revista da folha, as coisas boas, os lugares interessantes. Disse sim a todos os instantes que roubavam sua juventude. Disse sim aos dementes que exploravam seus talentos. Disse sim a inércia que lhe comeu as mãos, pensamentos e projetos. Disse sim ao mundo. Deu aval para o tudo que quisessem. Mas nunca ao que ele quisesse. Nunca disse sim para si mesmo. Nunca teve consciência de si. Era apenas um sim. Um doce corpo definhando na memória da infância cheia de sonhos, de futuros brilhantes, de pedidos de seja sempre assim. E ele era, dia após dia, o mesmo. Consumido num marasmo, num sorriso sempre branco e aberto na mesma altura do rosto. A mesma quantidade de carboidratos no almoço. Um gentil moço. “Esse é pra casar”. Tinha quarenta e sete anos e ainda era solteiro. Mas não se queixava. Jamais. Era gentil. Era um simples sim ambulante. Mas dentro da sua cabeça às vezes, lá nas gavetas do fundo, aquelas que costuma guardar furacões, ficavam algumas obediências também. Mas ele nunca as colocaria em prática, elas nem mesmo subiriam algum dia aos seus lábios sorridentes. Vamos fugir? Vamos pular de uma ponte? Vamos nos jogar na frente do metrô as seis da tarde? Vamos estilhaçar a janela daquela cretina do décimo terceiro andar? Vamos mandar aquele chefe escroto passear? Vamos mandar essas mulheres que dizem “é pra casar” pra puta que o pariu? Vamos explodir a Times New Roman? Vamos dançar pelados na posse do Obama? Qualquer coisa absolutamente insana?
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Um gentil rapaz como sempre. Condescendente com tudo, até com seu lado escuro.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Quando o projecionista foi ler uma revista no banheiro do shopping

Sibila a língua em expectativa. Os membros tesos. Todas as esperanças depositadas naquela diplomacia barata. Toda aquela demanda por um nome, um porque, a infâmia de uma palavra. Um novo jogo de pegar. Assisto à tudo do lado de fora. A língua estrala, rumino respostas que poderiam ser dadas, mas estou do lado de fora. Em outra realidade. Alguns porques parecem inertes, indiferentes lembretes da nossa existência. Coisas que jazem na lixeira da minha sala. Não questiono mais, apenas largo o braço e corro ao longe. Se quiser minha opinião, que venha até mim e peça. Mas não jogue comigo. Estou do lado de fora do tabuleiro. Apenas vendo os estalos, os membros tesos.
Se é inconveniente a minha existência, porque me pede favores? Se sou rude o bastante para tirar-te lascas, porque não o sou para carregar tuas caixas?
Rio e você não me entende, você diz: “ Sua voz parece triste” e eu digo que não é nada. De que adianta prolongar uma discussão com mais de seis palavras?
Apenas deixo que decida. Nada do que diga me afeta. Eu não fui na cola da tua sola, nem mesmo ergui um olho na tua passagem por uma rua qualquer. Que me lembre, e lembro bem, foi a tua mão que pousou no meu número, a tua voz que pediu a minha risadas. Não te invoquei em nada. Então, se pede silêncio, o terá em absoluto, se me pede favores, terá ainda sim o anonimato e o silêncio do nada que se movimenta pelas paredes. Nada tenho a ver com os teus romances, nada tenho que entender dos seus ciúmes. Não sou tua. Não te almejo. Em sonho vejo muitas, mas nunca o teu rosto. Nem mesmo qualquer um dos teus membros.

A língua estala do avesso. Silêncio. Silencio todo o jogo. Peça à peça em retirada. Do lado de fora do tabuleiro. Tuas peças ficam lá amontoadas. Dou as costas, teu jogo prossegue, entre choros, mínguas e flertes. Se escolheu alguém para jogar e lhe diz amor, que tenho eu a ver com essa novela toda?

O que determinadas pessoas esperam dos meus olhos é sempre um mistério e o que elas entendem dos meus sorrisos é bem incerto. Não conseguem ver além do manifesto, dos palhaços coladas à porta? São fantoches, minha nossa. O projecionista deixou a sala! Corram todos! O que se fará do filme? Ele prossegue, simples assim. O projecionista foi ao banheiro, ler uma revista, fumar um cigarro.

“Você parece triste”
....... mas eu não estou em mim, como posso parecer alguma coisa?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Boneco de corda num pingo de chuva

Ergue a perninha, vai. Tô mandando. Deixa eu puxar os fios aí da sua cabeça. Anda vai. Imita um macaco,isso, assim. Abre um sorriso, caralho. Isso, assim. Bonito. Perfeito. Agora dança. Isso. Macarena. Funk. Isso vai. Rebola. Muito bem. Agora vai, põe esse terno ai. Não o azul, sua besta, o cinza. Isso, o cinza-cidade. O cinza- São Paulo. Pega a pasta. Isso. Os relatórios. Pega o ônibus. Ops, uma velhinha, as sete da manhã, finge que tá dormindo. Isso, bom, garoto, peraí, que o fio enrolou. Agora sim. Desce. Anda correndo com medo de tudo. Isso toma um café rápido num copo de vidro sujo na padaria do seu Manuel. Agora trabalha sem olhar pro lado até as seis. “Alô, bom -dia” “Bom-dia” “o relatório tá aqui” “A impressora quebrou”. Gostoso. Deixa eu puxar o fio aí da sua cabeça, anda, deixa de frescura, não tem nada ai dentro mesmo, você não pensa, você só acha que pensa quando eu ponho um papel dentro da sua cabeça e nele escrevo “Pensa”. Só assim, bem mastigado. Tá chovendo. O céu está cinza. Perdi você de vista no meio da cidade, é tudo cinza. Não adianta correr, só disse isso pra você não reclamar de liberdade. Mas é só puxar a cordinha que eu te encontro. Opa, puxei com força, te dei um tombo, te dei um roxo pra você ficar esperto. Quem puxa as tuas cordas sou eu. Agora espera no ponto sem guarda-chuva uma hora e meia até o ônibus passar lotado. Você entra e se confunde com tantas outras cordinhas, puxei a perna do vizinho em vez da tua. Foi divertido. Tá apertado? Esse cheiro de jaula te incomoda? Três horas dentro do ônibus, um trânsito dos infernos hein! Abre um sorriso, vamos, abre por gosto, ou te puxo as cordas da boca e te faço sorrir até as orelhas em definitivo. Isso. Bom menino. Agora chega em casa e senta na frente da TV e fica ai quietinho que eu vou jantar.

Em frente à TV o homem cinza fica. Nenhuma palavra. Nenhum movimento. Janta algo que estava dentro do microondas. Deita e dorme. Sobre a cama pendem frouxas uma dezena de cordas soltas.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O homem que queria ser uma nuvem

De si para si repetia o milagre das respostas largamente imaginadas. Sentia o rosto duro, o corte da boca seco. Ficava assim inerte sobre a mesa, trabalhando. Sem olhar para os lados, sem atender o telefone. Sem prestar atenção em nada. Ficava cada dia mais alheio, cada dia mais sozinho. Queria jogar forca e perder.

Mantinha-se atrasado para o seu próprio tempo. Demorava em cumprir seus próprios prazos. Esperava talvez o acaso de ônibus em alta velocidade e desgovernado. Mas o acaso quando desejado não ocorre, se torna uma impossibilidade.

Relampeava dentro do seu coração. Não choveu torrencialmente como previsto, mas dentro de si houve uma tempestade, que arrancou casas do lugar e neurônios de seu lar, alagou uma série de gavetas, desmanchou a tinta das tabuletas. Ficava alheio a tudo e mesmo a si. Mecânico, pensava nas chances de desaparecer por completo. Já era quase intangível, mas queria tornar-se de uma vez impensável.

Uma malha branca recobria pedaços do céu, pela janela apertada (que se parecia muito com um sorriso forçado) podia ver pedaços brancos de algodão boiando melancólicos num azul sereno. Ali soltas, intangíveis,impensáveis, não pensantes e absurdamente imagináveis. Podiam ser tudo que a retina permite. Podiam passear discretas sem ninguém lhe deitar o dedo. Suspirou.

Decididamente ele queria ser uma nuvem. Abriu a boca da janela, e sentou no beiral. Estendeu os dedos para o algodão e deitou-lhe ali os pulsos. Deixou-se suave. Caído. Branco. Intangível. Impensável.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Em duas ruas paralelas em dois mundos desconexos perdi meu nome

Tomada por um impulso frenético, palavras corroendo os cantos da boca, ali sentada, sem mais o que dizer, sem mais o que pedir. A chuva se esvaí pelos pêlos asfálticos da cidade. Ali no cinza tudo se desfaz. Sobre o rosto alheios de milhares de passantes calados. Eu fico ali, a contemplar um mar de rostos improváveis ou a chuva? Não me satisfaz exatamente.

Tomada por um impulso excêntrico, descendo as escadas de uma casa que não é minha, perdi meu nome nas paredes do labirinto. Onde está o meu gato? onde está meu passaporte mágico? Não existe um mundo de fantasias prováveis? Degustáveis? Não existe nada além desse vão que sucumbe aos meus passos. Passo. O dia. A noite vendo, revendo, entrevendo as posses de uma certeza que não mais me habita.

Irrita
a sensação de estrangeirismo, eu não sou daqui, não mais, e fica tudo por isso mesmo. Quando vou me achar, minhas linhas, meus desenhos, meus reflexos, não mais me mantém desperto. Troco de nome, pulo de sexo, alheio (a) à todas as posições emocionais e geográficas.

Habita?
Não sei. Se me encontrar por aí, me passe o número do meu RG, CPF, endereço para entrega. Fico vagando assim alheia. Entre todos os estranhos, conhecidos e lembrados. Se você me vir por aí ponha um poema no meu bolso e me deixe seguir.

Uma hora eu volto, me espera?
Poema Chuvoso para um dia sem nuvens

Fiquei ali
pensando
alheia
em meio à pilhas de planos
panos
de um rosto
já não meu.

Alheia à chuva
- essa parte do meu corpo -
All I Need
ecoando nas veias

Esperando um silêncio
que já é distante
catando estrelas
caídas num estouro

Fiquei esperando
sem me cansar

Mas agora eu olho pro céu
e só a chuva
não me satisfaz

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Jogando xadrez com tampas de coca

Pensei em todas as possibilidades para uma vida breve, um roteiro prático, com notas de rodapé sobre o que estava certo e o errado. Alguma coisa assim meio livro de auto ajuda, meio manual de instruções. Todas as pessoas deveriam ter um, o meu eu perdi, ou quem sabe nem foi redigido.

Mas ela esqueceu de todas as notas da música. De todas as cores de Almodovar e não há mais o que esperar.

Mesmo se houvesse um manual,agora eu o queimaria.Não tenho mais interesse de saber como funcionam os mecanismos dessa coisa toda que move as pessoas ou as mantém inertes.

Ela havia esquecido do som dos chinelos pela sala, do som, das datas, ela não sabia mais distinguir o dia dele em meio aos outros no calendário.

Pensei em fazer um roteiro breve. Para uma vida breve e não menos desapegada. Mas e sempre mas ficou uma nota azeda entre as frutas do bolo. Ficou assim com um cuspe no meio do beijo. Receio que agora tenha se acabado.

Ela esqueceu de como era o formato das mãos dele no reflexo dos espelhos e de todos os poemas que haviam imaginado. Nem mesmo havia o pequeno gesto, a gentileza, tudo numa afasia se desfez.

Voltaram e se esbarraram no meio da Radial Leste, não olharam nos olhos. Eram estranhos e alheios. Apenas mais um par de peças velhas, Que já não se combinam, no jogo da cidade cinza.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Alexia e os móveis

Poderia tecer um intestino tentando capturar todas as histórias que gostaria de te contar. São todas inventadas, porque, você sabe, aqui na minha vidinha, não acontece nada. Aqui o tempo para, tosse, escarra e continua seu caminho. Ele esquece que por aqui também há relógios. Biológicos e mecânicos. Mas o que se há de fazer? Mandar uma carta de reclamação?

“caro senhor tempo, venho por meio desta, reclamar de seus serviços, aliás da falta dos mesmos, o senhor se esquece que aqui por essas paragens onde resido, também o tempo deve correr. Será porque não há uma rede de fast food em minha região que não somos considerados civilizados e por isso indignos de seus serviços? Espero que mude sua postura.
Cordialmente
Alexia Correia”

Creio que a carta pararia na recepção da vida, atolada até as portas de tantas outras milhões de cartas semelhantes a minha. Mas enfim, a gente faz o que pode não é? A gente tenta. Mas ah, me perdoe, me perdi em reflexões. Tenho muitas histórias pra te contar, muitas mesmos, sobre um escritor, um homem estranho, aliás muitos homens estranhos que passaram por aqui e sobretudo de umas mulheres com cara de pastel que aportaram alguns dias aqui na cidade. Você deve rir do meu jeito, não se incomode, não é uma censura, todos riem. Até eu. A gente faz o que pode para passar as horas por aqui. Até rir um pouco das nossas idiotices, que você sabe, depois de um tempo, até as coisas da casa adquirem um pouco da nossa cara e dos nossos tiques. É sério! Ontem mesmo, minha escrivaninha teve um longo ataque de bico de papagaio, ficou curvada por horas a pobre, e por um tempo não pude escrever. A coitada tremelicou feito vara verde. Cogitei a idéia de levá-la ao médico, mas ela é muito teimosa, e preferiu ficar lá amuada no canto. Às vezes não agüento essas birras dos meus móveis. É sério, eles me levam a loucura. Nessas horas acho até um pouco bom não ter muita gente por aqui. Teria uma ataque se houvessem outras pessoas tendo ataques....mas ela já está bem. Não se preocupe, ela está bem. Passei a noite inteira ao sei lado. Cantarolando. Você deve estar ocupada e essa carta já se estende muito. Outra hora lhe escrevo para contar as novidades daqui.

Abraços
Alexia

PS: você não se incomoda com as minhas cartas não é mesmo? Não? É que, aquela mesa de jantar linguaruda, andou falando que você não responde minhas cartas porque não quer, eu sei que você deve estar muito ocupada...mas escreva quando puder, estarei aqui esperando...

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Um estranho à espera de um milagre

O pobre imbecil esperou envolto em lágrimas até o último segundo daquele dia fatídico. Onze e meia. Onze e trinta e oito. Onze e quarenta e sete. Nada. nenhuma palavra. Nenhum movimento. Aquele pobre diabo esperava a coisa mais simples e tosca do mundo: um telefonema. Um telefonema de aniversário. Nada mais do que isso. Esperava ansioso que ela lhe justificasse a demora, remoia as desculpas que ela nunca lhe daria, porque o telefone não iria tocar. Ela o havia esquecido completamente. E essa certeza inundava seu rosto em ondas cheias de rictos. Qualquer sinal, qualquer palavra dela bastaria. Não pedia mais que isso, como um bom cachorro, contentava-se com menos que migalhas. E vendo a impossibilidade de receber ao menos isso, seu peito uivava dolorido. Queria correr, queria ir até sua casa e perguntar porque. Mas ele melhor que qualquer outro sabia o porque. Sabia todas as respostas, por isso mesmo era um imbecil. Deixava seu sentimental dominar todas as fibras do seu corpo. Era menos que um indigente. Não havia quem lembrasse dele como individuo. Senão por um acaso. Senão por um descuido. Os cento e noventa e três números da sua agenda telefônica de nada serviam, porque ele podia contar nos dedos as pessoas que haviam se lembrado dele, e que curioso, não somam UMA mão. Nem ao menos isso.
As lágrimas escorriam pela seu queixo, pescoço e desembocavam em sua barriga. Ali, formando verdadeiras ondas de tristeza. Onze e cinqüenta e cinco. Corroia-se de dor. Sentia-se pequeno e nulo. Menos que uma formiga no meio da selva. Apenas ali. Por um acaso havia nascido, e nem saberia explicar porque cometeu essa indelicadeza. O pobre imbecil não sabia o motivo de nada, não tinha razão para nada. Não era. E todas essas certezas juntas faziam seu rosto inchar. Vincos abismais se abriam no seu peito. Todas as certezas que julgara até agora existentes caiam por terra. Era a merda de um fraco. Um pedaço de vidro simples debaixo de uma picape. Esmagado. Fragmentado. Inútil. Absurdamente inútil.

Ela havia se esquecido completamente dele. Ele era apenas um estranho e como este, seu lugar era na sarjeta da memória visual, um mero resíduo, um mero acaso. Seus pensamentos iam e voltavam, em correntes de ódio por si mesmo e pelo resto da terra. Queria muito sumir, simplesmente desaparecer, não faria a menor diferença para ela. Para ninguém na verdade. Era tão fraco. Era tão tolo. E isso não fazia diferença para ninguém. Para quem faria diferença saber que ele passou o dia vendo a chuva cair na espera de um abraço? Para quem faria diferença se ele passou os últimos minutos do seu dia em prantos? Sozinho. Largado. Trancado no seu quarto. Inchado. Lacrimoso. Lamurioso. E além de tudo silencioso, contendo a respiração para não acordar as paredes. Os móveis. Os lápis e toda a sorte de objetos inanimados.

Meia noite. E não, não ocorreu como um inesperado e presumível final de filme, em que no último segundo o desejo se realiza e um sorriso se abre, não. O telefone permaneceu ali mudo, inerte. Ela não ligou. Ela o havia esquecido completamente. A sua pequena felicidade de saber-se minimamente importante pra ela desvaneceu-se. Agora ele era um total estranho.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Vinte e quatro copos de conhaque ou vinte e três e meio?

Olho para a pilha de copos de vidro enfileirados sobre o balcão. Baixos, longos, finos, grossos, sujos, limpos, nossos. Meu e meu. Nosso. Restos brilhantes e líquidos se despedem no ar. Evaporam doces com a lentidão de um beijo mordido e sangrado. Com a mesma exatidão de uma mão sobre o dorso. Delicado. O ar passa e vibra em diferentes tons. Barítonos. Sopranos. Contrabaixos, embaixo, assalto de palavras populares na borda do soluço. Desculpe. Soluço. Ali na beira fina daquele copo vejo saltar um último fio de saliva minha para a eternidade. Escorrendo gracioso como a chuva por uma grade. Vejo-o descendo, como uma carícia pelo copo até tocar a superfície tabaco e fria do balcão. Olhar atento para a sexualidade das coisas. Suspiro. Desvio. A atenção para a porta que se abre e para o ninguém que entra com passos lentos.
Sensível movimento na ponta dos dedos, inverto a ordem dos copos pra praticar o desapego, mas eles existem assim dessa forma, não adianta colocar em desordem. O tempo passa e os copos foram se acumulando lado a lado. Acho que bebi um pouco demais ou beberam por mim? Perdi um pouco a conta já não sei se são vinte e quatro ou doze ou trinta. A somatório dos conteúdos é pequena,quase um feto; a das formas é um pouco melhor,um pequeno dejeto; a das memórias alinha-se à um Baóba. Trajetória estranha até mesmo para as minhas coisas. História incerta sem previsão de final. Nem final feliz. Os copos alinhados de bebidas diferentes, experimentados em horas descrentes dançam colados. Festejam a vinda de mais um copo, este, que ainda cheio se posta meio de lado, assim alheio, meio controverso, mas no fundo igual a todos os outros copos sobre a mesa. Olho-o. Sua cor parece suja. Sua beira oferece cortes. Seu vidro é disforme. Um copo feio, não há outro? O ninguém que entrou de passos lentos meneia a cabeça num não. Posta o copo a minha frente e debruça-se para observar. Seria o último? Ou mais uma infinidade de outros viriam se encostar ali? Em verdade, eu desejaria apenas mais seis. Apenas seis. Mas quem há de controlar o vício? Ou o acaso? Se a prosa é boa, prossegue-se. Se é ruim, a gente ajeita. Se for muito dramática, puxamos um riso do bolso. Se for angústia pura, enfiamos a pistola no rosto. Eu só não pulo da janela, porque preciso pagar a conta. Fica chato fugir do bar sem pagar. Ficar em dívida. As vezes gostaria, até já ergui um pouco o corpo do banco, mas quando vejo outros correrem afoitos, deixando as carteiras, blusas e afins pelo caminho, vejo que não vale muito a pena. A porta dos fundos desemboca num beco fétido. Ainda prefiro o charme francês de Godard, a porta da frente e seus ares de néon. Ainda prefiro um copo a mais. Põe na conta e enche mais um.
Saio do bar e vejo meu nome numa lista, a minha conta tem um valor que não vejo. Quando for a hora de pagar, saco o cartão de débito e pronto. Mas acho que vai demorar, sempre me disseram, que quanto mais você quer uma coisa, mais ela teima em não acontecer. É provável. Chove. Essa chuva me persegue desde meu primeiro gemido no mundo. Faz parte de mim, é quase uma extensão da minha’lma turva. Fecho um pouco o casaco marrom de aviador. No bolso minha Lua dormita e meu Drummond se encosta. O ar da noite é gelado e me estapeia de leve. Sempre pronto a brincar. A sexualidade das coisas inspira o ar. Deixo que me toque com capricho. Dobro a esquina e ando com calma entrando num mar de guarda-chuvas que não é de amor, nunca são os guarda-chuvas de Godard nem os de Truffaut.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Encanadores também sofrem de amor

E eu limpo minha bunda com cartas de amor. Toda manhã eu retiro uma das folhas do caderno que era seu e limpo minha bunda com as suas palavras. Vejo pela descarga descer em espirais de água suja os sentimentos alfabéticos da nossa canção. Vejo a janela e vejo a chuva. Eu tenho um cachorro chamado Hell e eu o mato todo dia pela manhã, depois de limpar a bunda com as suas cartas. Ele é o meu Abel. Mas ele é de pelúcia, me divirto em arrancar-lhe a cabeça de modos diversos e depois remendar com linhas coloridas. Ele parece um arco-íris sentado ali na quina da janela. Ontem eu arranquei sua cabeça usando o batente da porta, anteontem com uma faca de cozinha torta. Hoje eu ainda não me decidi. Suas páginas estão acabando. O Abel que é Hell não agüenta mais, sua cabeça marrom pende ora para a direita ora para a esquerda. O que eu vou fazer quando essas coisas forem embora? Só me restará me jogar fora também. Me dar descarga junto com toda essa merda. Porque o amor é uma bosta.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O homem da janela de plástico

O futuro promissor ficou preso numa teia de aranha, acanhado num riso sem graça. O futuro promissor daquele homem parece distante a cada ano. Ele tinha vinte e cinco. Ele tem trinta e dois. E o futuro promissor continua lhe escapando entre os dedos, mas a verdade é que ele não se esforça muito pra agarrá-lo. Não faz força, espera que pouse em sua palma e ali fique delicado. Ali sentado por horas a fio rabiscando o mesmo caderno há mais de oito anos. Um caderno simples de 96 folhas, com espiral, que em oito anos não esgotou suas páginas. Seus escritos eram muito pontuais, donos de um estilo muito particular. A cada dia ele anotava uma palavra em um pedaço da folha. Na espera que o inimaginável batesse a sua porta. Como se um Peter Pan fosse arrancá-lo daquele marasmo e das teias de aranha e das bolas de poeira dentro da boca. Ele esperava e dentro da sua cabeça todas as coisas eram possíveis. Ele se via rodando o mundo com suas letras, dando voltas em reis, presidentes e lideres tribais. Via os rostos brilhando quando passava. Via. Revia. Antevia. Entrevia. Sofria de artrite. De tendinite nas duas mãos. De dores na coluna que por vezes o igualavam à um viaduto. Arco turvo dentro dos olhos perdidos. Via-se ali impossibilitado de sair. Mas via-se assim mesmo louvado. Mesmo ali dentro de um porão escuro, ali escrevia suas letras magistrais e via o mundo original por uma fresta da janela, que já não tinha vidro. Há muito havia se partido. E sem o dinheiro que ainda não vinha, mas viria. Remendou-a com uma sacola de mercado. Ficava ali vendo então, o mundo por um saco plástico do Carrefour. Na espera de um futuro promissor que já era um passado morto há muito.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Três cantos ingratos num canto minguado do quarto

Terceiro canto

E quando eu voltei ela estava longe

Arranjei uma boa desculpa pra me desesperar, abri a porta da sala e você não estava lá. Filha da mãe! Conseguiu fugir pela janela de um porta-retratos. A poeira não foi rarefeita o suficiente pra inibir sua certeza. E mesmo arranhando azulejos, deixando unhas de presente sobre a mesa, foi embora em menos de uma semana de loucura. Não agüentou o baque meu bem? De ficar presa atrás de uma porta de ferro? De gritar e ninguém ouvir seus berros? Você se liquefez em tristeza por baixo daquela porta pra me sentir mais uma vez, precisava da minha droga, espremer meu coração, mas esqueci de contar que a inércia causa alterações, e ao invés do suco doce que esperava, salivou meu peito uma bílis asquerosa. Eu ri. Ri horrores da sua cara de insatisfação e medo. Do outro lado da cama, ardendo num desejo afoito, queria cortar-me os dedos. Levou até mesmo de recordação um de meu lençóis na esperança dele conter apodrecidos beijos, mas porque minha cara não me arrancou alguns poemas? Alguns vestígios de doçura plena de lirismo? Era mais simples e seria até mais bonito de se pendurar na parede. Tomei um café forte, liguei a TV, um filme qualquer tomou o espaço destinado a você, qualquer coisa serve, a morte de um cão, as ofertas do Polishop, o último capítulo da novela. Você sempre volta mais cansada a minha porta. E eu sempre te prendo na minha cela. Somos doentes eu e você, mas quem admitir vai perder. Huahahahahahahahahahahah..você se diverte fugindo de si, achando que eu vou te dar algum conforto, não vê que eu sou louco? Que eu não tenho nada além de facas para extirpar suas tristezas? Apenas pequenos contos de Sade pra te satisfazer. Martelar seus dedos do meio só pra montar uma ponte até uma estrela qualquer ou até o supermercado mais próximo. Só mesmo você. Sério, só mesmo você. Eu não tenho campainha, mas quando quiser, é só me passar um pãozinho mofado por debaixo da porta. É a senha para os nosso jogos mortais. Você colada à porta e eu do outro lado rindo do seu suspirar. E se em algum momento de tédio suspiro no seu corpo de ferro oxidado, você me deixa na solitária por dois dias ou mais. Tanta gente pra ser minha enfermeira...e tinha que ser alguém tão bela e louca como você. Posso ouvir seus passos no corredor. A janela é do mesmo tamanho de sempre, o mesmo porta-retratos cinzas, mas não espere que eu ria pra você.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Três cantos ingratos num canto minguado do quarto

Segundo canto

Se ela gritou eu estava longe

Meus pés cheiram a mortos. Respiram narinas num parto de odores acres. O trem sacoleja e grita a cada parada. Poucas pessoas ali dentro daquela molenga lata de sardinhas. Bêbados. Putas. Velhos. E ...eu. Apropriado. Ainda ouço você gritar. Dentro daquela cela acolchoada. Atrás daquela porta que você desenhou para não me sonhar. Eu ganhei uma aposta e deixei você ficar..indefinidamente no meu lugar. Aproveite a estada, enquanto a mim, boa viagem.
Meus pés revogam a beleza dos metais. Em passos alongados. Êxtase por respirar longe dos vapores da sua loucura. Era tão bela, mulher, como tola. Deitou-me amarras quando eu não era um navio, e você muito menos um porto. À menos que a considerássemos um porto fantasma. Ou a mim, um navio pirata.
Éramos parte de um mesmo corpo, eu colhia damascos nas suas redomas, e você me sentia inteira em longos gemidos alterados. Seu homem indesejado, sua mulher alheia, sua criança pequena e seu escritor de arco-íris. Meu homem indesejado, minha mulher alheia, minha criança pequena, minha poetisa de linhas infames. Éramos parte de um mesmo desenho. Agora somos cacos de vinte e quatro espelhos. Impossível retomar a conversa da última palavra que ditamos. Vá à merda!
Continua berrando indefinida em sua redoma suas pequenas amarguras, seus pequenos defeitos acentuados sem mim, eras cega sem meus olhos, precisou arrancá-los de mim, mas eu os tenho em meu bolso. E por sua causa aprendi a ver sem precisar deles. Posso ler suas dores com a ponta dos meus vermes, penetrar seus damascos como uma peste. Veste a minha camisa preferida na minha ausência. Tece, um livro com os pensamentos encadeados da sua indecência. Mas sempre, até no achado da perfeição, me sonhas. Sem tocar nas letras do meu nome, me sonhas. Descreve o meu rosto. As minhas pernas e os meus amuos. Mulher, você, é realmente um acúmulo de deliciosas inutilidades. Sabia que eu sou de faca fria? Posso cortar suas palavras pela língua, na base da goela. E não ter que repisar nas suas estrelas.

O trem sacoleja ausente de ritmo, ora pra esquerda, ora pro abismo. Escura noite sem invenções. Meus dedos alimentam a sua paranóia a distância e eu quero mais é que as formigas façam baile na sua boca.

Tenha uma boa noite meu amor.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Três cantos ingratos num canto minguado do quarto

Primeiro canto

No quarto 923 alguém gritou

Prive-me logo de todas as sensações. Enfie essa marca na minha testa. A marca do desapego. Estou aqui há muito tempo, essa janela me parece igual, o mesmo tamanho. Estou presa num porta-retratos. Não me peça para sorrir. Ande logo com isso! Mas que diabos, me ouça! Olhe pra mim quando eu falo com você, porque eu sei que pode me ouvir aí do outro lado da porta. Eu sei. Posso sentir o calor do seu corpo transpassando o ferro. Seu cheiro ácido misturado ao metal. Seu corpo de tanto ficar colado a essa porta já deixou nela a vida. Fica em você uma casca apenas, toda a sua ausência e consentimento respiram nessa porta. E eu aqui do outro lado rio. Porque fez por bem em me manter cativa, me vejo cinicamente no direito de mantê-la em afasia. As marcas na minha pele são escuras, pequenos eclipses na derme amarelada e doente. Vejo a sua imagem sobre meus ombros. Ela ainda é tão pálida e alvoroçada. Hasteia seu coração numa praça, a sua carcaça já está cheia de formigas. Colada a porta. Posso vê-las jantando aqui. Em banquetes reais. Dionisíacos. Seus pedacinhos docemente triturados por minúsculas serras.
Atrás dessa porta que você construiu para não me ver e mesmo assim me tocar. Dia após dia corroendo os vãos e frinchas da minha memória eu lhe provoquei com minhas dobras, meus papéis, minhas pálpebras caídas e mortas sobre lençóis amanhecidos de um suor sem sonhos. Dia após dia eu lhe dei minhas vértebras sem reclamar. Até no claustro escuro que me colocou vi suas letras. Seu rosto imperfeito na cauda dos ratos. Seu pêlo no mofo do pão que docemente me passou por anos a fio por debaixo da porta de ferro que você colou ao meu corpo e ao seu pra não me ver e ainda assim me tocar. Eu lhe toquei com a ponta de meus dedos sujos. O seu reboco caiu diante dos meus suspiros. Mulher, você foi tola e histérica. E teve a coragem de me adiar uma visita. Você não olhou em meus olhos e sentiu meus vermes escorrendo, como gotas grossas de saliva sobre o assoalho. Você não quis ver meus dedos grossos perdendo a carne, você não quis ver minha voz perdendo a cor, ganhando ares de tijolo. Rouco. Pouco. Você não quis ver. Minhas cordas ficando velhas, minhas pernas ganhando cobras. Você se colou a porta, vértebra à trinco, nódoa à ricto, você desejou desaparecer junto com a loucura das minhas manhãs. Mulher, você me deixa num porta-retratos empoeirado, dentro de uma caixa de sapatos e me suspira em silêncio, eu sei. No fundo deseja minha carne entre seus dentes, me fazer de presa e cadáver nas suas noites de luto mórbido. Você almeja o que não posso dar.
Prive-me logo da merda dos sentidos! Ouça meus gritos ressoando como sinos! Que inferno. Deixe-me aqui ou retire meus restos em seus braços. Deixe-me morta ou me realce os traços. Nós duas assim morremos aos poucos, você colada à uma porta e eu do outro lado dela atada à camisas de força, à sorrisos falsos. Enfie seus dedos pela minha epiderme, o meu calor ainda é capaz de aquecer seu coração. Essa pedra que aprecia tanto. Minha pistola ainda pode engatilhar um tiro duplo em nossas testas em uníssono. Porta à porta. Rasteje entre minhas roupas como uma lufada de ar. Você me prende entre loucos e recusa-se a me soltar. Dança comigo em silêncio em noites de frio. Meu corpo se recobre de pústulas, sua puta. Sua boca me causa náuseas. E mesmo assim sorri em risos largos e rasgados. Quem é a dona dessa loucura que se enterra?
Você me deixa ao relento. Me permite cinzento, já não sou meu dono. Eis que me recordo ser outro em sono. Sua boca nojenta vocifera trajetos que minhas pernas curtas não podem percorrer. Seu sadismo não se resume a arrancar antenas de barata com palitos de dente. Eu odeio a sua carne rançosa. Me deleita ouvi-la gritar do outro lado dessa cruel porta meu nome. Não atenderei. Definhe com suas migalhas afundadas nas narinas, retinas e alvéolos. Quando seu corpo terminar de enferrujar, terei enfiado o pé nessa porta, transpassado sua boca torta e dado asas aos meus dois lados. Você me amou pela metade, é justo que eu te cuspa apenas uma parte.
Seria melhor se nunca tivesse me inundado de sedativos, nem apertado meus braços com amarras sublinhadas. Destaque ao meu amor, porque eu te amo, do verme a carcaça. E não se preocupe, cumprirei todas as honrarias com a tua cona e tuas pernas e teus seios e tuas verdades imperfeitas tuas palavras salgadas, hei de depositá-las todas no manicômio estadual. Muito apropriado, envergar tua coluna num beijo e presenteá-la com as chaves da minha cela, da minha sala pessoal. Bem-vinda, um gole de vinho? Só cuidado com os verminhos, me desculpe, a higiene do lugar é precária. Caio numa risada fora de mim. Você não se lembra de ter entrado, apenas tenta sair,mas deixar suas unhas na porta, apenas causará manchas difíceis de limpar. Sente-se, comporte-se, talvez assim eu a deixe ficar.