sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Diálogos invertidos ou quando minhas conversas interiores são mais interessantes que as discussões cinematográficas

- Talvez ela não precise.
- mas como? Como ela pode saber se eu existo se não ouvir minha voz?
- talvez ela não precise...
- ...
- ela não é cega, sabe que você está por perto e por isso mesmo evita...
- mas o que eu fiz pra ela ter tanta raiva?
- quem disse que é raiva?
- eu nunca perguntei, mas ...
- e nem pergunte, apenas dê espaço para que ela circule. Deixe-a livre, o seu maior problema é gostar de pássaros e gaiolas ao mesmo tempo. São dois opostos.
- não entendo
- entende sim, cada letra, cada virgula. Você sabe de todos os porquês. Deixe-a ir.
- mas eu a amo..
- você não sabe, você a deseja, é bem diferente
- mas não paro de pensar nela, no perfume, no som da voz..
- no corpo, sempre no corpo. Você não a ama.
- mas..
- nem mais nem menos. Você gosta e fica obsessivo, mas obsessão não é amor
- então o que é o amor?
- não sei
- como não sabe? Como pode dizer que o que eu sinto não é amor, quando nem você sabe o que ele é?
- eu não sei delineá-lo com palavras como você tanto quer. Eu apenas o sinto. Nem sempre acerto,mas sinto, por alguns instantes ou por dias inteiros.
- isso não é amor!
- amor não é corpo, não somente. Pode imaginá-la ao seu lado? Apenas ao seu lado, sem tocá-la e ainda assim sentir-se bem?
-...
- responda
- nunca pensei..
- então é desejo, uma prévia do que poderia ser o amor se você tivesse calma
- eu tenho
- não, não tem. Você gosta de arrancar asas de passarinhos para cultuá-los numa gaiola bonita. E isso, não é amor.
-chega! Não quero mais essa discussão
- então pare de se martirizar, de tentar tê-la de volta. Você não pode ter aquilo que nunca foi seu.
- foi meu! Foi toda minha!
- na sua cabeça, sim. Com certeza ela foi. Mas resista ao sonho e veja com clareza, ela nunca te prometeu nada, ela nunca te deu nada, além da fugaz palavra, do beijo negligente, ainda que gostoso, ausente. Ela nunca foi sua, entenda de uma vez.
- mas eu não quero esquecer... Ela foi tão boa, ela me fez tão bem
- não esqueça, apenas não diga. Deixe-a ir.
- e se..
- esqueça o se, pense que aconteceu e acabou. Como um pacote de bolachas, uma taça de vinho, é um prazer com tamanho definido, você pode apressar ou demorar-se mais, porém o fim é inevitável. E nem por isso deixa de ser prazeroso.
- eu me sinto muito só
- pare de sentir, vá dar uma volta de bicicleta, ler um livro. Amorteça a sua tristeza. Você tem muito tempo e muito sonho.
- eu não tenho muitas coisas
- você tem coisas até demais. E por isso mesmo não sabe o que fazer.
- eu..
- há uma pilha de coisas a sua espera. Você não se ocupa por que não quer. Não tem amigos porque não quer, não tem as mulheres que deseja por mais tempo, porque é afoito. Mas não fique tão preocupado. Você não precisa resolver todos os seus dilemas em três semanas.
Terminando essa última frase, o homem de casaco marrom, barba branca e chapéu de abas velho dobrou seu jornal milimetricamente. As duas partes estavam simétricas. Levantou-se vagarosamente do banco de pinho escuro, deixando sobre ele sua sombra suave. O fim da tarde se aproximava vagaroso. O laranja do céu encobria as dobras da sua face. Como um origami ele sorria e milhares de linhas se moviam, como num desenho ritmado. Seus olhos eram miúdos, mas pareciam conter todas as histórias e soluções. Era um pedaço do horizonte o azul de seus olhos,havia nele a secular força dos oceanos e os reflexos de luz assemelhavam-se a conchas nesse oceano inevitável. Sentado abaixo de si, estava um jovem de feições cansadas demais para sua pouca idade. Suas preocupações internas o carcomiam, seus cabelos escuros como o petróleo parecia sugar toda a luz para dentro de si, num buraco negro. Seus olhos famintos vislumbravam cada uma daquelas pequeninas linhas e via nelas todas as palavras até agora despejadas sobre seus ouvidos. Tinha a sensação de concha marinha nos ouvidos, com aquela voz vagarosa que destilava as últimas palavras com doçura. Seus ombros estavam um pouco retesados, sua camisa azul escura terminava nas calças jeans rasgadas e no tênis meio sujo das ruas. Nas suas mãos pendia uma reflex. Suas mãos a mantinham aninhada com um pequeno gato sobre seu colo. Viu meio absorto o homem do jornal e da barba se deslocar entre os passantes do parque. Lento. Rítmico. Leve. Como num sonho de Fellini. Olhou para sua câmera e viu nela a impressão daquele rosto. Parecia um novelo de linhas claras emoldurado por chapéu canhestro. Mas dentro daqueles olhos, mesmo ali naquela representação havia um universo de palavras misturadas, ora brutas, ora lapidadas.
Ele caminhava pelo parque em busca de algumas fotos, o dia estava alvo e o calor era intenso. Suava sem precedentes. Crianças, mulheres. Cachorros. Estruturas refletindo a luz da tarde. Suas fotos eram incessantes. Mas também não o satisfaziam. Quem o visse andando pela rua o tomaria por um furioso ou mesmo por um descontente. Sua face tripudiava do riso, e mesmo que tentasse ficava uma vontade de choro, um ricto bobo sobre todas as suas reverberações. Sentou-se num banco cansado. O dia era lindo e blá blá blá. Deixou a máquina pender sobre o regaço, estirou os braços ao redor do banco de pinho escuro, deixou o calor abater-se sobre a face e descamá-la suavemente das preocupações. Colocou o mp3 no ouvido, aquelas canções de “twinemen”. as linhas do baixo pareciam reger as linhas das coisas, até mesmo o vento parecia dançar conforme as linhas da bateria. Tentou suavizar seu rosto.
- porque ainda penso nela?
Seus pensamentos tomavam forma de murmúrio. E os murmúrios em palavras.
- talvez porque você não tenha muita coisa em que pensar ou talvez porque você goste de pensar.
Sentiu uma sombra em seu rosto e assustou-se ao ver uma figura branca, que lhe lembrou muito um novelo de linhas de lã. Olhou com apenas um olho, o outro estava fechado por causa do sol. Eram duas da tarde. Via que uma fenda se movia no meio daquele emaranhado de linhas e ficou alguns instantes pensando como aquilo era possível. Tirou um dos fones do ouvido.
- talvez você queria um pouco de biscoito.
O velho ergueu um saquinho de papel pardo na altura de seu rosto e num leve vai e vem insistiu na gentileza. A contragosto, pegou e agradeceu.
- geralmente são os velhos que falam sozinhos em bancos de praça, ou essa era uma música bem triste
-hein?
- você... (o velho ergueu as mãos aos ouvidos e imitou alguém com fone, balançando a cabeça e fazendo rostos caricatos) estava falando alto assim, mas eu não consegui entender o ritmo da música.
O jovem corou um pouco, se sentia constrangido. Para melhorar o seu dia que já não era bom, ainda tinha que ser zoado por um velho. Fez cara de zanga
- não se zangue. ( o velho sorriu e inclinou o corpo para frente, ajeitando-se no banco) eu também não sei porque gosto de algumas pessoas. É sempre algo estranho e complicado de definir. Olhe aquela mulher. Porque alguém gostaria dela? Será pelo que? Ou porque alguém gostaria de mim ou de você?
- boa pergunta
- pois é meu caro! ( dando um tapa no joelho e sorrindo miudamente entre as linhas amontoadas de seu rosto) ninguém sabe!
- mas eu sei porque gosto...
- sabe?
-sim.
- e ela, supondo que seja ela, sabe?
- sim, eu já disse. Mas ela me evita. Eu tento explicar. Tento ficar perto, fazê-la ouvir minha voz...

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Quando deixo o uniforme de Hitler do lado de fora do armário

Sempre o centro. Sempre a mesma sensação de centro. Anéis no dedo do meio, centralização. As aparências enganam. Ele parecia tão singelo, tão modesto na sua risonha estadia pelos espaços, mas na primeira chance, no primeiro verso de “Miedo” ele já estava vermelho e babando. Estava berrando. Estava ali, agressivo. Animal acuado sem ter um caçador. Uma floresta imaginaria projetada em todas as janelas, portas, rostos e palavras. Apenas ali naquela floresta imaginaria, floresta de Segall, ele se sentia bem, ele tinha a chance de se sentir inteiro, mas ao sair, quando o sol batia no seu rosto, via que nada havia. Que apenas havia gerado algo parecido com uma redoma incompreensível de palavras tortas e pontiagudas. Que havia pessoas suando, correndo e ele estava vociferando e gesticulando no meio de um escritório vazio.
E que ele não se sentia inteiro, ele estava mais vazio. Quando o sangue esfriou, viu que havia um frio mais intenso dentro e fora do seu corpo. Apagaram a luz e relevaram, como se faz com as crianças mimadas. Ele não era tão diferente do maior alvo de suas criticas. Ele só sabia se desculpar, mesmo que fosse pra fazer tudo novamente dentro de cinco minutos. Mesmo que fosse pra cansar todos a sua volta com as mesmas inquietações.
E ele já não sabia como fazer. Como tirar todo esse ódio? Essa insatisfação? Que não era dos outros, era dele. Como explicar, que aqueles dedos eretos e pontiagudos que ele esfregava nas faces alheias, não eram para as faces, para os corações que se magoavam, eram pra ele. Mesmo que ele não soubesse, eram pra ele. Ficou indefinido, sentado na frente de uma janela, vendo os carros passarem, vendo a noite cair. Vendo, pensando. Vendo, pensando. Vendo, pensando. E quanto mais pensava, mais planos tecia, tal uma aranha, para retomar as coisas. Tentava ocupar seu tempo com varias funções, todas importantes, mas não conseguia, tinha medo de decepcionar mais, e de tanto tremer, decepcionava e se irritava e gritava mais uma vez. E se acuava e mordia e rasgava e tolhia e matava. Passou sua vida inteira fazendo isso. Nesse movimento absurdo de desintegração mutua. Todas as pontes, dinamitava-as. Todas as relações, cortava-as. Extirpava qualquer sensação de complacência, doçura...como se testasse o senso dos seres ao seu redor e só quisesse permitir perto, quem pudesse suportar todos os tripúdios, revoltas e insólitas colocações. Só quisesse pessoas- rochedo, para tapear a pessoa-abismo que ele era. O grão de areia que ele havia se tornado. Ele podia ser um mar, um oceano, era o que todos esperavam. Mas ele só conseguia ser um grão de areia.
Respirou fundo. Ele sabia que era assim, já havia refletido tanto sobre tudo isso. Estava cansado. Precisava abrir. Dentro daquela casca pesada que havia construído, não conseguia respirar, não conseguia se mover, seus movimentos ficavam duros e ariscos, assim como suas palavras. Queria abrir aquela bendita porta, mas havia tanto lixo ali, tantas quinquilharias e sobre a porta havia uma tabuleta:
Atire primeiro, pergunte depois.
Passou os dedos sobre ela, sentiu uma dor fina e angustiada. As letras eram cortantes e cortadas no metal. Defensivo, tudo ali era tão defensivo. Tão agressivo. Esse adjetivo vibrava na sua retina, fazia turbilhão na sua cabeça. Se sentia uma besta, literalmente. Não era o que queria, mas como tirar toda aquela tralha dali e abrir aquela porta. Ele puxava, mas era tão pesada, tão resistente. Imaginou todos os obstáculos antes de mover um único músculo. E sentiu-se pequeno. Sentiu-se cansado. Deu dois passos para trás. “ ...O medo é uma casa onde ninguém vai...” ecoando. Mais dois passos para trás. Sentiu-se tão pequeno e mesquinho por fazer promessas tão fugazes. Sentiu-se pequeno por nem ter tentado. Olhou ao redor, talvez devesse chamar alguém para ajudá-lo,mas era tão orgulhoso para essas questões, embora já tivesse feito tanta coisa vergonhosa sem perceber. Embora sua noção de valores já tenha sido deturpada. Se olhasse ao seu redor, poderia perceber que havia se tornado um grão muito pequeno, muito misero.
Deu as costas, saiu da janela, foi até o armário e colocou seu casaco, era pesado, grosso e escuro, mas o colocou a despeito do sol que emanava. Saiu com passos pesados. Pegou na sua coleção de mascaras a mais medonha e saiu para a rua. Em alguns instantes poderia se ouvir sua voz e já imaginar suas contradições ocorrendo. Um filme muito clichê, previsível e sem charme era a sua definição naquele instante. Ele foi ruminando essa metáfora o caminho inteiro. E uma fúria o tomou por inteiro.
- Bom, dia!
- Vai se foder!
Sentiu-se culpado mal havia terminado, a boca ainda estava quente das palavras.
- me desculpe..
- otário.
Uma pessoa a menos no mundo de possibilidades da sua vida. Olhou para o lado, tentou ser altivo,mas suas costas estavam encurvadas. Agora ele entendia porque sem motivo aparente, algumas pessoas se jogavam na frente do trem ou do metrô as seis da tarde ou as onze da noite. Porque existia valium, o porque de trabalhar até a uma da manhã. O porque de tantas coisas. Deixou o casaco sobre um banco de ponto de ônibus, mas cinco minutos depois voltou para buscá-lo.
A sua floresta estava mais escura que nunca, não havia nenhum animal ali, mas se podia ouvir um uivo dolorido. E era tão assustador, havia tanto espaço para ecoar...

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Na ponte do tempo um transeunte se jogou sem o RG

Ficou um vazio. Depois de todas as coisas pensadas, ficou um vazio. Os problemas são os mesmos, mas parecem agora mais pesados, como se tomados de uma nova proposta ou antes armados para um débil fim. Há uma preguiça em mim para solucionar os problemas a minha volta, eles já me mostraram seus rostos, me deram seus endereços, sei até, de suas árvores genealógicas. Mas de um modo geral, tenho preguiça de dar-lhes cabo. Uma piedade tola e acomodada.
Acordei com uma inquietação. Uma vontade de virar as coisas do avesso, tirar o pó dos móveis, um pouco diferente da anterior, que se resumia a quebrar objetos e sair de casa para beber ou falar sem parar. A minha logística está um pouco deprimida, não tem sido utilizada. Há pontos dispersos, pontas soltas, línguas soltas, trapos acumulados nos cantos dos meus pensamentos. E há idéias pela metade.
Num instante paro pra pensar, mas realmente pensar, não fingir. Voltar ao zero. A estaca zero de tudo, tenho tempo pra isso, pelo menos até agora. Ainda dá tempo de pegar aquele ônibus? Se eu correr creio que sim. Esse é um processo que tem me custado muita imaginação. Pegar o ônibus. Pra conseguir pagar minha passagem com dinheiro. Pra ter as coisas que dentro da minha cabeça estão tão solidas. Pra ter. pra ser. Quero colocar um ponto final nessas histórias inacabadas, dar o acabamento no que falta. Non, je ne regrete rien ecoando na minha cabeça, mas não cantada pra ninguém, apenas para mim. Apenas para mim. As utopias infelizmente só dão certo nos livros, vide o socialismo de Lênin. Chega de parar o tempo todo para pensar. as histórias ficam se repetindo, e essa repetição tem mais malefícios do que eu poderia imaginar.
Ficou um vazio, mas dessa vez eu não acho ruim, porque depois de jogar tudo fora eu tenho tempo e espaço pra refazer as paredes, a decoração. é tarde, a noite caí lá fora. Está tão gostosa para beber. Beber a noite, extasiar de estrelas, ficar divagando num mesa de madeira, não preciso de nada alcoólico hoje. Na verdade, todas as outras coisas podem esperar. Haverá tempo para aceitar outros convites, mas hoje não. Não posso continuar saindo com aquilo que não me pertence. Não consigo mais parecer aquilo que eu não sou. Os reflexos que tenho visto de mim, me dão outros nomes. Eu grito, mas eles não atendem. Não respondem, atendem por nomes que não conheço. Então, se não me atendem e não querem ter prosa comigo, o que posso fazer além de deixá-los ir seja lá pra onde? Dou as costas, o ponto de ônibus fica do outro lado da rua. E acredite, ela parece bem distante, mas já esteve mais. Passos lentos. Passos lentos, como uma canção, um solo de violino que exige paciência de quem ouve. Paciência...algo que tenho que saber onde comprar ou se existe um workshop sobre o assunto.
No alto, na ponte entre o céu e a terra reside um silêncio, que do alto da ponte, bem na curva, acende um cigarro e contempla algumas palavras e alguns passos dados para uma direção qualquer. Uma sineta de estrelas soa, acendendo o calor da noite. O vento sopra balançando os cabelos e os corpos de todas as coisas sobre a terra, abaixo e acima dela. E assim, todas as criaturas pressentem que algo de intrigante, ainda sem forma, sem distinção de benévolo ou malévolo se aproxima, como uma nuvem bem nas laterais da lua.
E todas as coisas narradas num livro nem sempre são sensíveis, verossímeis ou didáticas. E todos os escritores no fundo se assemelham a silêncios sobre pontes imaginárias e uma hora ou outra eles se suicidam, se precipitam na realidade por um motivo qualquer. Às vezes voltam, noutras se perdem.
Será que eu consigo ainda pegar aquele ônibus?

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Imaginarium I: Quando Isabela dormiu numa caixa de sapatos

Isabela colecionava caixas de sapato. Era estranha a sua mania, pelo menos era isso que todo mundo dizia. Mas ela tinha caixas de todas as cores, modelos e formatos. Sabia de cor, e isso era o mais impressionante, qual era o modelo, a cor e o dono dos sapatos ou dos tênis, sandálias, chinelos..enfim, se fosse uma caixa de coisas de colocar no pé, Isabela tinha. Seu maior prazer era chegar em casa no fim da tarde, após um dia estressante de trabalho e catalogar com carinho todas as suas caixas de sapato. E que alegria era chegar em casa com uma nova aquisição!
Os vizinhos à chamavam de louca, os catadores de papelão a odiavam, mas e daí? Isabela adorava caixas de sapato. Alguns amigos, os poucos que tinha, lhe davam caixas de presente, eram caixas embrulhadas que continham caixas de sapato. Ela ria e se divertia bastante com o agrado. Sempre indagavam porque ela não comprava os benditos sapatos, e ela paciente respondia “ eu já tenho um”.
Todos os dias, lá pelas cinco da tarde, Isabela saia do trabalho e olhava na parte de trás das lojas, procurando como numa vitrine, os seus adoráveis souvenires. Colocava-os na bolsa e partia feliz pra casa. Mas ela nunca, nunca mesmo passava pela frente das lojas. Quando perguntavam porque, ela simplesmente respondia “ As caixas ficam na parte de trás, eu gosto de caixas, porque olhar a vitrine se elas não estão lá?” incrivelmente as pessoas encontravam nisso um argumento lógico.
Mas um dos seus colegas de trabalho não se convenceu com a resposta, contra-argumentando que na vitrine havia caixas muito mais bonitas e novas. Isabela nem deu trela.
O tempo foi passando, a casa de Isabela estava cada vez mais apinhada de caixas de todas as cores e modelos e números. Ela comprava estantes, instalava prateleiras para melhor acomodar seus mimos. Quem a visse pela janela da casa, acharia bastante irreal a cena de uma mulher pequena, de vestido vermelho, sentada num sofá esverdeado com decoração noveau jantando com o prato na mão (a mesa também estava cheia de caixas de sapato) no meio do que parecia um estoque de loja de calçados.
Era sei aniversário, mais um entre tantos que ela já não lembrava mais, sua noção de números variava entre o 32 e o 41. Entre as diferenças de sola. E por ai vai. Nesse dia seus colegas de trabalho resolveram lhe fazer uma surpresa, que mais tinha ares de ensaio cientifico do que de surpresa propriamente dita. Lá estava ela, Isabela, como seu sapato rotineiro, feliz da vida com a surpresa, já imaginava uma daquelas caixas chiques, pretas com ornamentos. Andava temerosa, seus colegas a guiavam. Esquerda, direita, frente, olha a escada, quente, quente, ihhh, friooo, quente. Esquerda, direita, está quase lá. Seus passinhos delicados soavam. O sapatinho gasto via o chão por frestas de ar em seu solado. Sempre próximo.
Para. Para. Bem ai. Bem ai.
E ela parou. Abra os olhos, tire a venda. E ela tirou.
Ela estava bem em frente a uma imensa e maravilhosa loja de sapatos, de vitrine vistosa, com sapatos que brilhavam com todas as cores. Ela parou. Seus olhos se encheram de lágrimas. Ela quis correr. Ela quis correr, ela até tentou, mas suas pernas ficaram petrificadas. Ninguém nunca viu tanta emoção por causa de uma loja de sapatos. Respirou. Abriu os olhos e contemplou as caixas. Esqueceu das pessoas e viu as caixas. Entrou na loja e pediu uma caixa. Nada mais que isso uma caixa. Seus colegas não entenderam e ela nem deu tempo para explicações. Pegou a caixa e saiu correndo. Entrou em casa, trancou-se jogou a caixa por sobre as outras. E ficou olhando para aquelas enormes pilhas.
Ela não tinha dinheiro para comprar sapatos. Queria se convencer que era isso. Que precisava poupar dinheiro. Que era essa a razão de tudo. Queria desabar, mas não chorou. Olhou para suas caixas tristes e vazias. Ela não tinha pés. O que havia dentro dos sapatinhos surrados era uma deformação que ela não queria ver.
A grande verdade é que ela tinha vergonha de mostrar o que estava dentro dos sapatinhos. Respirou pesadamente,desatou o nó de fita dos seus cabelos. retirou com cuidado os sapatinhos surrados. Ficou olhando para seus pés, ou seus quase pés e balançou-os. Levantou e procurou uma caixa vermelha com detalhes brancos. Fechou os olhos. Estendeu um braço, debruçou-se sobre o aparelho de som e ficou ali ouvindo música. Abriu os braços.
Na rua um homem de sobretudo passava, seu rosto era triste e ele tenha uma caixa nas mãos, dentro dela um miadinho feliz saia. Ele ia pra casa. Olhou casualmente para a janela. Ficou perplexo ao ver uma moça dançando ali com caixas. Com os pés metido numa caixa de sapatos muito pequena. Nem pés de criança caberiam ali, pensou ele. Coçou a cabeça e ficou olhando. Cada um com sua loucura. Tirou o gato da caixa e deixou-a na entrada da casa. Colocou o gato no bolso do sobretudo, olhou mais uma vez e foi embora.
Ali em casa ela poderia experimentar suas caixas e imaginar todos os sapatos do mundo. Poderia ter a todos sem ter nenhum.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Se eu disser que pensei antes é mentira

Nada do que eu faça parece o bastante. Solidão às vezes é bom, mas quando a gente sabe quando é demais? Nada do que eu faça parece ser bom, tentativas patéticas de respirar. Aliviar um peito remendado e frouxo por natureza. Não se trata de "vitimismo" ou qualquer outra coisa inventada nesse palco, trata-se apenas de um cansaço pelas tentativas frustradas. As coisas que eu busco já foram consumidas. E desde o dia que parei do peitoral da janela pra olhar a rua, tudo tem me parecido indelicado.O final de janeiro se aproxima, e mais uma vez não me traz uma alegria. Apenas algo solto como a folha do calendário.
Resposta de um escritor à um leitor do jornal de domingo

Você me sonha, em tudo que escreve me imagina nas entrelinhas. E mesmo assim me quer longe como um pássaro no inverno. O seu par não sabe dançar? Que culpa tenho eu? Tudo que faço é livremente inspirado em fatos reais, que culpa eu tenho da vida ser uma merda? Seu par é alérgico a amendoim? Que culpa tenho eu se você adora? Só não me venha aporrinhar, com cartas descompostas. Não me venha fazer círculos nas palavras do meu texto, achando que realmente penso em demarcar os erros. Eu nem mesmo ligo. Se puder fazer o que quiser longe das minhas folhas, faça. Mas não me venha circular as entrelinhas na busca de uma mensagem oculta. Está tudo aí estampado como morte no jornal de domingo. Do modo mais claro e melodramático possível. Não tenho culpa das suas guerras interiores e exteriores, não conheço o seu terreno nem seu corpo diplomático. Então, não me venha com sobrolho torcido pra tudo que eu faço. Não venha fazer rinha no meu espaço. Se ponho nas letras uma leve decadência, pensa que eu te recrimino, se ponho tristeza é porque te reanimo, se ponho alegria fraca é porque você perdeu uma peça no imenso jogo que se propôs. Que culpa tenho eu do que te aconteceu ontem agora ou depois? As favas. Se a numerologia previu que meu nome é maldito, tente o pseudônimo. Se este também for vá as favas com a sua ciência e me deixe aqui com meus nomes arredios. Ponho créditos maldosos pra você se machucar, se caiu na isca, não tenho culpa da sua ingenuidade. E nem eu da minha habilidade de fazer armadilhas pra passarinhos desatentos. Você me quer longe dos suportes, dos postes, das casas que tenham a sua marca. Então mije por cima do que é seu, talvez assim eu não me aproxime. A não ser que eu carregue desinfetante comigo. E sou bem cretino pra fazer isso. E só de birra, pra te irritar, escrever sobre a sua urina que eu mandei um oi, um beijo e um tudo bem pra família. Que acha? Mije sobre tudo que é seu, pense mesmo sobre isso, erga sua perninha sobre os livros, mulheres, espaços, sites e flores. Faça uma redoma de mijo. Um mundo todo seu. Seu, até que a vigilância sanitária apareça pra te aplicar uma multa.
Você me sonha, parece até piada. Mas você deve sonhar que eu te escrevo tudo. Que é pra você que eu ponho letras num papel ou num outro suporte. Mas francamente, eu não sei seu nome, e nem quero saber. Eu não sei seu endereço, seu telefone e nem quero saber. Eu quero mais é que minhas letras abram um corte na sua cara e te deixem assim mais tranqüilo, se quiser até te passo um telefone de casa de sadomasoquismo. Talvez assim você aproveite melhor seu tempo, do que vir aqui me torrar os nervos, que nem pele tem mais de tão aflorados. Determinados leitores deviam brincar de forca e perder.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Quando o pequeno príncipe resolveu comprar um flat na Lua

Confirmei minhas suspeitas, alias minhas certezas. Engraçado, como as pessoas precisam de palavras verbalizadas para terem alguma confirmação. Como se a boca fosse um juiz que nunca mentisse. Mas por método empírico, sabe-se que longe disso, a boca é a fonte de todos os enganos. É ela que propaga as discrepâncias, as discordâncias e as ilusões. Sem a carne dela, nada atingiria o valor de real. Como um corte pode exercer tanta influencia sobre a vida dos seres? O ânus, que também é um corte no meio da flacidez da carne, não tem importância,na verdade nenhuma influência sobre as ações e respostas. Mas a boca, essa infeliz tem. Mas através dela confirmei o que o meu sentido já me dizia. Você estava lá com outro alguém. Eu já sabia pelo seu jeito de sorrir, de tratar. Tão triste, não por você, ou pelo sentimento que poderia ter tomado raízes em mim, mas por descobrir a insinceridade em todos os seus argumentos. Já não penso em relembrá-los, eram todos falsos. Apenas palavras ditas ao acaso. Os seres humanos tem essa característica tão implícita, de dizer apenas o que lhes convém. E você disse tudo que lhe veio a cabeça e eu tolamente acreditei. Permiti a trapaça, não há quem culpar. Mas há como perder o respeito, isso sempre há. E na minha cabeça, algumas coisas funcionam ainda como no cinema clássico:as traições e as falhas de caráter ainda são nocivas. Ainda são asquerosas. Tenho as minhas e por isso mesmo me purgo tanto. Mas de você que eu esperava mais, foi bem desagradável saber que não era uma paranóia. Que não eram cenas extras inventadas no meu tempo livre.
Depus a pistola prateada sobre a cabeceira da cama, não vale a pena engatilhá-la por tão pouco, por objetos que se despedaçam por qualquer coisa. Como um animal vira-lata que abana o rabo para qualquer estranho. Minha pistola para de pulsar, fica calma, até mesmo indiferente. O coração é uma fenda para um mundo bem estranho e incontrolável. E quando se olha para trás e vê pelo que as balas foram desperdiçadas, é quase um assombro como a imbecilidade e a servidão são partes do ser. Como não podem ser repelidas. A fraqueza é odiosa e tediosa. E realmente, ela tem me entediado bastante ultimamente. Poderia fazer mais do que chafurdar aqui por pequenas migalhas. E mesmo assim fico. Mas isso me cansa,me causa dores nas costas. A pose de vitima, essa pose dual de amor aos dois lados em conflito me encheu. Chega de ações diplomáticas. Quero que o mundinho exterior as minhas necessidades exploda ruidosamente. As favas.
Troco de roupa, retiro as roupas surradas, o jeans velho e rasgado na barra. Essa fantasia já durou muito. Essa casca está trincada demais. Eu não acredito mais em mim. Essa cara no espelho já não é minha. Hora de embaralhar as cartas. Coloco meu casaco marrom de aviador, no bolso apenas meu baralho novo, minhas chaves e o dinheiro exato pra ir e quem sabe voltar. Uma mala de viagem preta, como todos os pronomes, vocês, as cartas, os pesadelos, as palavras, os poemas, as inquietações. Olho ao redor, o quarto cheio de quinquilharias e coisas por fazer. Minhas barbas, se eu as tivesse, estariam em iguais condições. Apenas respiro e abro a janela, se eu voltar aqui mais uma vez, não quero respirar esse ar velho de novo. Algumas roupas na mochila, porque é sempre bom ter uma mochila quando se vai viajar. O destino? Sei lá. Talvez a lua, visitar Mèliés. É parece uma boa, será que faz frio por lá? Bem, isso pouco importa, o casaco é quente.
No ponto de ônibus resolvo deixar a mala. Por ali mesmo, pego apenas o poema de Drummond, que sempre me serviu de consolo e de aventura nesse último ano. Para tudo e para todos, recomeçar. Sempre um mal necessário. Mesmo que seja nas pequenas coisas, como o principio de um roteiro. Enfio o poema no bolso, junto com as chaves e o baralho. Levo apenas a mochila com meia dúzia de livros e duas camisas que eu nunca usei, por achar que não ficavam bem em mim, mas afinal o que fica bem?
Entro no primeiro ônibus que aparece. Pela janela observo tudo com olhar estrangeiro, como se fosse a primeira vez em milênios que eu saísse de casa, ou de mim. As pessoas se apinham no corredor. Vejo pelo reflexo No vidro. Ah, levanto para um qualquer outro sentar, tudo isso já foi cômodo em demasia.
Ando pelas ruas sem saber pra onde, vejo o ônibus que me deixou aqui fazer uma curva. Lugar bacana, meio vazio, seja lá onde ele for. Troco minhas roupas num brechó. Coisas novas, mesmo que sejam velhas. Mas pelo menos coisas que não são minhas. Que não me respiram. Compro um chocolate com o dinheiro da volta. Arranjo outro jeito de voltar, não quero pensar nisso agora. Sento num banco qualquer e escrevo na aba de um livro um pensamento qualquer, do tipo, como as pessoas (e me incluo nelas) são estranhas, cometem os mesmos erros que criticam, fazem inferno de ações simples. Afinal, eu deveria, ter seguido o meu principio interno: todas as pessoas em algum momento vão te desapontar ou te magoar, conscientes ou não disso. Mais cedo ou mais tarde. Tentei me convencer de que era um erro, mas esse é o único pensamento certo que tive até agora. É preciso magoar para sobreviver, assim como é preciso matar de alguma forma para sobreviver, mesmo que não se coma da carne, a flor e as plantas devem ser podadas, devem morrer para que eu sobreviva. É um lei que não pode ser mudada. Por mais que eu odeie ser filha da puta com outras pessoas, tenho plena consciência que já o fui diversas vezes. Inveja das crianças e dos monges tibetanos, que por espírito ou inocência não se prendem a esses conflitos. Se eles forem filhos da puta suas mães ou seus dalais ou seus Karmas irão redimi-los e explicar-lhes a gênese do erro. A aba do livro acaba, tenho preguiça de pegar outro para continuar. Fecho os olhos e continuo escrevendo dentro da minha cabeça. Procuro nas gavetas a caneta e em outra os papeis, coloco uma cadeira bem perto das orbitas, para que não tenha que ligar um abajur. E continuo a minha descrição perversa dos seres. Das pequenas novelas. Faço roteiros com nomes desconhecidos. Coisas que possivelmente não filmarei se mantiver minha idéia de morrer jovem, antes dos 30 para ser mais precisa. Tenho pouco tempo de vida útil. Sete anos. Sete anos no Tibet. Filme sem graça do caramba. mas me lembra também seven, os setes pecados capitais. Esse é bem melhor.
Abro os olhos, mas continuo escrevendo. Lá dentro o pequeno romancista continua seu árduo trabalho e o bibliotecário também, catalogando todas as coisas pensadas em livros enormes de consulta. Imagino espirais, estantes de Escher dentro do meu miolo. A lua parece muito distante. Ergo as mãos tentando tocá-la, mas a ponta dos meus dedos não chega. Seria bem mais fácil desenhar uma lua de papel e sentar ao lado dela. Pequeno príncipe remodelado. Eu e minha lua num banco de praça discutindo as relações humanas. A gênese do mal estar. Seria algo bem cômico para uma historia. Assim como as coisas que eu penso. E pensar que horas atrás eu me propunha a largar todas as idéias e vícios por um pronome. As coisas vem e voltam no oceano da minha memória. Se chocam como marés e as vezes dão vôos rasantes como pássaros esfomeados. Em pensar que eu pensei em dividir roteiros e créditos finais com você. É pra rir da idiotice da gente quando se passa um certo período de tempo. Como é fácil tecer caminhos e nem sequer se preocupar em olhar para o chão. As vezes há uma vala, noutras um rato morto e você pode sem querer, cometer a indelicadeza de pisar em suas entranhas.
E
O mundo é uma grande indelicadeza. Berro encima do banco com minha lua de papel na mão. O mundo é uma grande indelicadeza! e eu, eu sou sensível pra caralho! Então para ficarmos de bem com o mundo, vou me embora pra Lua. Eu e minha lua, minha pequena lua. Acredite, isso sem um pingo de álcool no sangue. Foi-se o tempo em que eu encharcava de álcool todas as partes do meu corpo e achava bacana. Jogo minha mascara no chão e rio dela. Coloco minha lua no bolso, ao lado do baralho, do Drummond e das chaves e vou-me. Afinal, o que mais eu posso precisar?
Com passos leves o corpo se afasta, o casaco de aviador é a única coisa que se reconhece, o tênis faz curvas no chão e desenha sobre a poeira do asfalto um ou dois poemas concretistas. O caminho até a Lua é longo e deve demorar muitos dias.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Para rir, parir, tá tudo ali embolado na gramática noturna

E você nunca vai saber o quanto isso dói em mim. E sabe porque? Porque eu rio! Isso mesmo porque eu rio. De tudo. Da dor. Do amor. Dos vermes de banheiro que nascem do meu desleixo. Eu rio de tudo. E contento o mundo com um rosto largo. Atrás das bobagens e das lascivas palavras não se pode ver o choro. As emoções rasgadas como pacotes de bolacha. Devoradas por renúncias, dúvidas e medos. Não é possível ver através da lona que pintei pra me esconder. E eu pinto bem. Você não desconfia quando me vê passado mostrando uma fileira anêmica de dentes que até mesmo os palhaços riem de agonia, porque como dizem, nem todo riso é de alegria. Pranteio e morro. Peço socorro. Mas você, nem ninguém pode me atender, porque vocês não podem ver. São cegos. E eu brinco de cabra-cega com vocês. Aceito todas as culpas,aceito todos os vermes, todas as desculpas, me nego a dizer o quanto me dói. Sorrio, e digo apenas “deixa pra lá”, quando o que eu queria mesmo é dizer “ deixa eu te enfiar a cara naquela privada ali?” mas eu sou besta. Eu sou risonha. Não me levem a sério. Eu sou louca, e uma mulher louca não tem argumentos válidos para nada, nem para escolher a cor das cortinas da sala. Nem para parir filhos, nem para dar o cú. Uma mulher louca não tem crédito nem com Deus, se este existisse. Nem com a vendinha ali da esquina. Mas eu não sou louca. Vocês acham que eu dou brechas pra insanidade, mas não é verdade. Eu brinco com ela, tanto quanto brinco com vocês. Eu teço verbos irregulares, deixo minha imaginação dominar os espaços, tenho espasmos pela manhã e acho normal. É como fazer abdominal com a cabeça. Vocês me dão as costas, me deixam falando com as paredes, porque eu sou interna. Eu gosto de olhar pras minhas entranhas e acariciá-las. Gosto mesmo de cuidar de mim. Da minha beleza interior. Eu não sou louca, eu babo nos travesseiros de propósito, gosto do cheiro acre da minha baba, tanto quanto da minha urina. E eu gosto de pintar desenhos nas paredes com sangue de menstruação. É boa tinta, não descora. É um vermelho vivo, mais vivo do que o olho da gente quando caí xampu. Estranho? Talvez, mas é explicável, como tudo no mundo. E eu adoro sentir o vento que bate pela janela lateral do quarto à noitinha. É bom pra dormir.
Você nunca imagina nada disso quando me vê passado com meias coloridas e sorriso pregado na cara. Nem imagina o tanto de pregos que gasto pela manhã para mantê-lo por todo dia assim.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

E se...


E se às vezes você faz algo sem pensar, uma palavra, um comentário que pode aborrecer e machucar? Desequilibrar um mundo além do seu? Não seria egocentrismo achar que toda catastrófe é culpa sua, mas seria ingênuo imaginar que não é? Se é, me desculpe, se não foi, não diga nada. Ah, eu já não sei, se me movo abro crateras, se mantenho inércia, crio feridas. Se penso em mim, sou abjeta, se penso nos outros, sou trouxa. Se não penso, sou filha da puta. Se me querem numa camisa de força, está bem fácil. Se não querem vão conseguir do mesmo jeito. Quando acho que dá pé, afundo. Quando penso que acabou, alguém grita. Se almejo um silêncio, batem a minha porta. Se me calo, sou triste. E se por fim me mato, sou frouxa.
Afinal o que diabos as pessoas esperam?
Um pacote especial e bem delimitado pra cada uma? Eu não sei ser assim, eu sou meio estranha, apocaliptica e densa. Let's get in on tocando dentro da minha cabeça. Não sei porque, mais uma tristeza me pegou pelas mãos. Você escreveu eu li, e não sei porque me senti a causa. Deve ser um hábito católico. A famosa culpa. Eu tenho as minhas no cartótio. Eu vou me isolar. Isso ajuda? Uma hora alguma coisa que eu faça vai te agradar? Nem que seja desaparecer? Eu já o fiz. Se digo oi, você se cala ou calam por você.
Diabos, a minha lberdade custa mais sangue do que eu esperava, terei que derramá-lo. A minha cela tem trinco frouxo, mas vou ficar aqui, bancando a louca, babando nas roupas. Me deixem ficar aqui.

Histórias para botão dormir

Muitos dias se passaram desde a última vez que eu o vi. Reconheci de longe seu rosto, embora não saiba de que lado ele tenha vindo. Apenas parou as minhas costas. Quando me virei para procurá-lo, já o havia encontrado. Foi como ver um espelho, porque é sempre muito bom (e as vezes assustador) ter alguém que te conhece tão bem. Que sabe as palavras antes que você abra a boca. Mas por uma descrição ou por uma analise silenciosa permite que você dispare palavras, frases, seqüências inteiras de monólogos dignos de um papagaio. Ele se limita a rir discretamente dessa sua mania, ele sabe que você será assim até o último dia. Mas a grande verdade, é que ele não se incomoda. Sabe que você é assim e pronto. Vocês sentam lado a lado e conversam por horas a fio. Sobre todas as coisas, sobre as mesmas coisas e sobre coisa nenhuma, todos esses assuntos maravilhosamente intercalados, como em “encontros e desencontros”. palavras aqui desembocam em outras palavras na ponta de lá. Brincando de telefone sem fio. As horas passam amaciadas por um certo conforto. Existe alguma coisa que o tempo não destrói. E essa é uma dúvida estranha: como é que o tempo escolhe o que vai deteriorar? Quer dizer, ele escolhe? Ou simplesmente bancamos o pequeno príncipe relaxado? Deixando a rosa por lá ao relento? Difícil dizer, visto que eu sou uma pessoa nitidamente descuidada como tudo. As coisas me chateiam com clareza, saem da minha história como personagens rasos de um livro muito grande. Quando você percebe, já sumiu. Botão A, botão B, botão C. as pessoas se resumem a botões e siglas na maquina da memória. E de certa forma até fica mais fácil contar uma historia assim, montar um roteiro. As pessoas como botões e alavancas de uma engrenagem estranha, que falha e as vezes corre com as coisas. Não tem um ritmo definido. Mas tem uma sonoridade distinta. Botões...
O botão A estava apaixonado pelo Botão B. O botão B resolveu dar um fora no Botão A, disse que precisava de uma pessoa mais louca, menos certinha. O botão A condoeu-se todo e saiu a perguntar a todos os outros botões se ela realmente era tão certinha assim, se não havia algo de maluco dentro dela. Os outros botões se entreolhavam e respondiam em coro ao final de um momento de reflexão (que não durava mais que um segundo, afinal de contas eram botões, diabos! Tinham trabalho a fazer, e sempre estavam a espera que alguém os pressionasse) “ Sim, você realmente é muito meiga, certinha e tal, mas isso não é ruim”. ela olhava com aqueles olhos miúdos de botão e não sabia o que dizer. Ficava na frente de um espelho se olhando para saber se era realmente tão frágil, tão fofa. Ficava procurando a louca dentro dela. Mas não achou, afinal você não acha o que não tem. E muito embora loucura brote bem no meio do miolo de um sujeito, ela não saberia separar um tipo da outra. O botão A tinha uma amiga, o botão C que dava para todos os outros botões, alavancas, engrenagens, fios de graxa e afins e que estava apaixonada pelo botão D, que tinha uma linha com outro botão já. Usando de suas artimanhas,o botão C deu para o Botão D, que dez minutos após ter dado cabo do trabalho, aprumou-se e foi-se embora. Deixando o botão C com reflexos imensos de alegria.
Os botões A e C conversavam, dividiam suas pequenas dores, tentavam conquistar seus respectivos botões, armavam conversar. Um dia o botão C deu para o botão B na cara do botão A que contou tudo para o Botão D, que disse “ Foda-se”. O botão A saiu gargalhando e não perdeu um dia se fazendo de vitima para todos os outros botões. Como o botão C é isso, como o botão C é aquilo. Na verdade, se poderia dizer que o botão A estava mais pra agulha do que para botão. O botão C e o botão B disseram “Foda-se”. Ai foi um inferno, um tal de picuinha daqui, cara amarrada dali, grosseria daqui, não quero mais dacolá. Linhas foram tecidas, cortadas, atadas, até que tudo virou um emaranhado só, de pedaços, restos e incongruências. Os outros botões apenas olhavam e montavam bolões de apostas pra saber no fim das contas qual botão ia sair da camisa. Até agora nenhum botão saiu, mas toda hora tem um remendo, um detalhe para apurar.... E o botão D continua na sua linha respondendo “foda-se” pra quem vem lhe encher o saco.
E,
No fim das contas os botões fazem sempre as mesmas coisas. Eu faço sempre as mesmas coisas, o dia, tudo possui uma rotina, mesmo que seja grotesca, como é a rotina das relações humanas. Sempre a mesma cantilena, sempre a mesma pistola apontada pro meio da testa. As pessoas curtem mesmo pintar um alvo na testa e berrar “vamos lá, quem acertar primeiro, quem acertar primeiro!”
Histórias como essa, a gente vê a cada lata de lixo. Os objetos tem a mesma rotina. Apenas não foram dotados de boca, o que nesse caso é uma benção, nem gostaria de imaginar minha geladeira reclamando de artrite e de como o fogão recebe mais atenção e coisas desse gênero. As pessoas poderiam ser um pouco mais parecidas com os objetos ou pelo menos com personagens de filme Noir, que sempre falam pouco e são sempre muito pontuais. Dizem extremamente o necessário, não ficam se preocupando em preencher linhas e linhas e linhas, contando o número de linhas ou coisas desse tipo. Se você pegar todos os diálogos de um filme como “gosto de sangue” não me surpreenderei em ver que os diálogos todos juntos de cinco personagens não preenchem nem cinco folhas.
E ele resolveu ouvir todas as teorias caóticas que saiam da minha cabeça, até dá pra imaginar meu tampo encima do tampo da mesa, e as coisas saindo e tomando vida, fazendo demonstrações quase circenses das palavras. Ele deve olhar por cima da minha testa e rir horrores. Porque ele não tem histórias como as minhas, nem as que eu ouço nem as que eu invento. Então acabo sempre servindo de ponte entre ele e esse estranho mundo fantástico de inquietações humanas.
Nessa hora os botões e agulhas dormem, enquanto lhes dá de vez em quando uma senhora dor nas costas, uma pontada ou qualquer coisa desse gênero. O botão A deve estar rabiscando algo num caderno, ou inventando uma peça de teatro em que o botão B morra esgoelado. Será que botões também se atiram na frente de carros?
Ele não sabe me responder. Entra no ônibus e volta para seu mundo matemático e probabilístico. Eu olho sem querer muito para a rua, é sempre um caminho torto de volta pra casa. E um passo mais perto da Lua. Será que uma hora ele saberá me responder?

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

De quando a borra do café me rendeu uma dor de cabeça enorme e um poema concreto na parede do quarto

Deixa-me tranqüila.
Deixa-me quieta na vaga. Deixa-me vagar.
Devagar subir as escadas.
Divagar sobre todas as ações mundanas.
Dancing in the moonlight
Deixa-me assim meio louca, vagando entre escritos intranqüilos
Deixa-me assim inscrita
Nas linhas terapêuticas de uma manhã sem luxo
Deixa-me ...
Sincera
Ou mentirosa
Descobrir nas minhas dobras
As verdades passageiras
Na
Memória
Destrancar
A rouquidão dos meus gritos
Abafados por travesseiros de papel.
Deixa-me assídua
Freqüentadora de mim
Sentar na primeira cadeira
Ver a première de um filme
Ainda não editado.
Deixa-me assim
Raquítica
Admirando a imensidão do espaço
Deixa-me escolher
Quais serão os próximos passos,
ouço-os na escada, fico esperando o aproximar, mas eles rumam para outra porta. Os dias poderiam ser como longos poemas concretos, assim, desajeitadamente belos. Após uma tarde de contragostos e diálogos insólitos, me recobre uma calma, ainda que em reboliço fique meu coração. Uma pequena conversa ao acaso, aliviou-me um pouco a tensão. Depois de alguns subterfúgios, o diálogo que renova as gotas de saliva, porque eu ainda não consigo dizer “help me” com naturalidade, ainda peço que me adivinhem as chagas. Mas pelo menos, já divido, não engulo.
E ás vezes até cuspo de modo suave,embora ainda me subam lágrimas tremidas nos timbres da voz.
Eu poderia obrigar à todos a aceitar meu mundo. Minha pequena república de humor palestino e de memória descartável, mas seria abusivo. E a menos, que todos fossem seres compreensivos seria uma guerra contra mim. E já me bastam minhas pequenas guerras. Tenho notado as oscilações do meu humor. As oscilações do meu amor e de tudo que está ao meu redor. A única coisa constante é uma charmosa melancolia a la Ian Curtis (que depois se torna irritante e depois volta a ser doce). Eu poderia provar todas as minhas teorias insanas a cerca da humanidade e das condições humanas, mas seria um desperdício de palavras. Aquela frase ainda é a razão de tentar não levar nada muito a sério, nenhuma pessoa, nem mesmo a mim. Misturar em doses parciais a descrença quase completa e a sensibilidade do meu gênio. Tarefa pouco divertida, é como preparar uma bomba, que pode explodir e te decepar a mão. E eu gosto das minhas mãos.
Tenho a sensação que algo vai explodir na minha cara. E não é a minha pistola, ela está tão quieta, dentro do coldre adormecida. Nem mesmo tenho cara mais de alvo, não muito pelo menos. A primeira semana efetiva do ano continua como se fosse do ano anterior, os dias tem passado um tanto revoltos, mas ainda assim calmos. Mesmo que dentro aja um emaranhado de sensações e já algumas pequenas decepções e já algumas pequenas alegrias secretas. Mesmo na primeira semana efetiva do ano isso já ocorre. É um prenuncio de caos por aqui, mas sempre ou quase sempre após o caos vem o silêncio cansado. Me deixo assim amanhecida
Me deixo assim anestesiada pelos pensamentos
Pequenas palavras sólidas
Criando formas insólitas
Me deixo assim num passado
De centímetros de distância
Deixo-me assim
Sem pretexto
Para um novo texto
Deixo a página em branco
Decidir pela morte ou pela inércia
Deixo-me caída sobre a cadeira
Observando o passar dos carros
Olhos de cachorro
À tudo seguindo.
Intränquilamente
Deixo-me inscrita
Entre pilhas amórficas de papel
Presentes de um dia exausto
Deixo-me
Deixa-me
Deitada no ombro do tempo
Brincando de dar nós em ponteiros
Deixa-me tranqüila.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Quando até coveiros aprendem a sorrir

Não me passou pela cabeça que seria assim. Fiquei tanto tempo sonhando, que quando resolvi abrir os olhos todos olhavam pra mim. As chances estavam ali na ponta dos meus dedos dos pés, mas eu nem havia reparado. E agora que já não há tanto espaço, eu quero respirar.


Mas eu gosto de coisas improváveis. Fiquei imaginando o que seria a perfeição, relendo escritos antigos,imaginei se havia melhorado ou não. Acho que sim, pareço menos homicida, menos pessimista. Mas talvez seja a minha imaginação.


Ela andava por uma rua sem placa, o dia era calmo, e o vento soprava de encontro ao seu rosto conversas alheias e trechos de música. O que havia em seus pensamentos era o amor, e não havia outro assunto, porque sua genética foi concebida para o amor e não o saberia fazê-lo sem ser a uma mulher. Seus dias passavam assim como dedos passam em paredes velhas, deixando atrás de si pequenos pedaços de reboco opaco. Suas mãos tinham cal e um leve toque de velharia, tudo que exalava perfume ou histórias lhe interessava. E ela andava por aquela rua sem precisar de um destino. Deixou atrás de si um amontoado de passos, e fez das lágrimas um cantil de sonhos. CAda dia que passará hibernando, tendo apenas a tristeza como prato do dia ficou para trás, assim como o reboco, a noite e as folhas de papel.


O que era a perfeição? Nos seus olhos não encontraria resposta para tal questão. E essa era a grande graça do seu riso. Havia um Neruda entre seus dentes escondido e não saber onde suas pernas a levariam era a perfeição do dia. Cansou de escrever roteiros, planos, listas intermináveis que sabia que não cumpriria. Era desperdicio de tempo, árvores e carinhos. Quantos beijos sonhados foram desperdiçados em poemas sem fim? Poemas não possuiam boca nem a textura da saliva, que poderia eles então fazer por ela?


Nada. Andava a esmo, algumas fotos em preto e branco. Uma garota linda do outro lado da rua. Um olhar trocado, um pequeno flerte, uma diversão pra alma. Gostava do sorriso tempestuoso. Alguns de seus amigos, diziam que o bom mesmo era ter alguém para a eternidade. Mas ela sabe que não nasceu pra isso. A eternidade tem prazo de validade. É como uma taça de vinho, um orgasmo, não é pra sempre, mas é igualmente doce e bom. Ela é relativa. Cansada de eternidades,mas e daí? Sempre a espaço pra mais um talvez, uma eternidade impensada. Eu ainda passaria alguns anos da minha vida com você, outros anos com ela. E outros anos com algum outro alguém. O maior número de pessoas para receber meu coração. O maior número para fazê-lo sumir.


Eu tenho um dom, isso eu sei. Funciono como um filtro, que retém tudo que é desgosto e desatino, deixo quem me ama mais densa ou mais liquída, mais pronta para o que ela quiser fazer. Mas isso me impede de ter uma felicidade normal. Aquela, com cachorro, dias juntas vendo Tv e casa na praia aos domingos. Eu poderia passar meus dias remoendo tudo isso, como vidro, mas prefiro dividir até desintegrar.


Que sejam felizes todos os que puderem ser. Os que não puderem um dia vão tirar a venda dos olhos, por que afinal de contas, nunca é tarde demais. E hoje eu acordei paciente, desmembrada e descumpridora das minhas promessas. É um bom dia para errar.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Enquanto espero um disco voador explodir a prefeitura e uma vaca cuspir aboboras

Acordo as vezes com seu nome costurado na minha boca. Até penso em dizê-lo em voz alta, mas fico com receio que uma vez livre eu o perca. Deito na cama e imagino as letras passeando pelo teto. Imagino você ao meu lado tentando Lê-las. Sempre lhe imagino como um pedaço de mim, quase uma peça de roupa, algo extremamente necessário. Sinto falta,mas não posso nem em sonho te dizer isso. Deve ser por isso, que até mesmo quando sonho com você, a cena muda quando tento dizer essa frase. Aparece um transformer, ou simplesmente uma gravação numa praia e você com outro alguém. O que não está muito longe da realidade. Vieram esses dias me dizer, que é quase certeza que você tem um segundo alguém.
Parei.
Respirei
E resolvi não responder. Dei de ombros, mas por dentro havia duas pessoas brigando: um alguém que abria cascatas no ventre e inundava tudo e outro que fatiava corpos num fatiador de frios e achava bom mesmo pegar as coisas ir embora e explodir o prédio. Com você dentro é claro. Nenhuma das duas partes obteve votos suficientes do meu cérebro, nem da minha pistola pulsante. Ignorei.
Passo assim os dias sentindo cada vez menos a sua falta, pensando menos, mas as vezes, como hoje, me assola uma vontade de deitar na sua barriga e ficar conversando sobre qualquer coisa. As vezes bate essa bobagem toda. As vezes não. Mas o que ferra, é que eu nem sequer posso pensar na possibilidade de dizer isso a você. E em alguns momentos eu bem que queria.
Acordo as vezes com seu nome costurado na minha boca e ele fica me machucando o dia todo, os dedos percorrem teclados variados numa esperança que meu inconsciente aflua e deixe livre as palavras, mas isso não ocorre. Digito e apago. Digito e apago. Suspiro e apago....e as palavras ficam dando voltas dentro de mim, brincando de bate-bate em quanto procuram algo melhor pra fazer ou até se dissolverem. Elas ficam lá dentro indo da goela à ponta dos meus dedos. Formigando tudo no caminho. Tento evitar. Tento pensar em outra coisa, mas eu lembro até do som da sua voz, é olha que sou péssima pra reconhecer áudio. O dia todo passa assim. A pilha de papeis e listas de coisas pra fazer vai dominando os moveis e as paredes. Pequenos lembretes com datas. Com nomes, formas. Eu deveria mesmo e colocar um lembrete sobre você, algo como “preciso parar de pensar em você até o dia tal” ou “esqueça”, “urgente!! Esqueça!”. Mas provavelmente, como na psicologia reversa, só me lembraria mais de você. E de todos os seus detalhes.
Acordo...e nem sei porque acordo. Já que fico sonhando em pé, enquanto sorvo o café,enquanto arrumo a cama. Penso em você. Penso em voar. Em sumir, pra qualquer lugar, até ficar completamente vazia de expectativas e memórias. Alias, deveria haver nesse país, um lixão publico para as memórias indesejadas ou muito gastas. Seria uma boa proposta. Eu votaria nesse candidato. Mas possivelmente só eu, nem a mãe dele votaria. Mas enfim. Fujo do assunto, tentando fechar portas, colocar obstáculos, para que o seu nome e a sua lembrança tão fraquinha não cheguem muito perto.
K.....
Se eu pudesse eu largaria dos vícios, dos diálogos aflitos, das formas idiotas de representação. Do teatro da minha vida, pra ficar assim sem muito esforço com você. Seria sempre uma faca de dois gumes e sim, sempre haveriam muitos cortes, mas sempre seria interessante. Viajando sempre em roteiros, palavras e associações estéticas, um casal de cineastas percorrendo os lugares mais estranhos. Produzindo juntas os filmes mais insanos. Depois voltar pra um apartamento e ver o bruto das nossas idéias se transformando em belas imagens, em belos diálogos. Dormir. Ter a certeza de que você estaria ali pra reclamar de mim. De que eu seria mala o suficiente pra te fazer perder a hora do trabalho. Se. Se. Se. Se. Milhares de ses entre eu e você. Um oceano de sés. Se eu pudesse passaria, não todos, mas com certeza muitos dos meus dias ao seu lado. Mas acho que isso só ocorrerá no dia que vacas cuspirem aboboras inteiras em carrinhos de mercado.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Aranhas sobre a colcha

Teço planos
que já nascem mortos.

Os olhos cravejam
de distâncias os espaços,
além das linhas retas do teu nome
nada me singra.

Sinto-me por vezes,
encouraçado sem razão
num porto de memórias.

Tenho astros
dentro das falas,
mas não há ouvidos
nas paredes
nem preces
nos espelhos.

Não há nos livros velhos
nas lombadas de minhas mãos
abrigo
para essa solidão tão reticente

Não há olhos, astros, mãos,
livros ou planos
que já não estejam defuntos
dentro desse aglomerado
de resíduos.

Eu apenas quero dormir
e não ter pressa de acordar
como a mesma pessoa.

Eu quero na medida do descrédito
apagar todos os dias anteriores
aos da agenda de hoje
ter amnésia
ter um olhar estrangeiro
com tudo que me detém
dentro desse aglomerado
de resíduos.
Eu almejo
um descanso e um respiro.

talvez tecer
um novo corpo
e
um novo
pássaro
para recriar minhas manhãs.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

...

Gostaria de mentir
Dizer que já não sinto nada
que flores e vermes
tem o mesmo sabor.
Mas um incomodo me desajeita,
uma pontada ansiosa
e eu gostaria de mentir
dizer que ainda não é.

Mas sou presa de anseios mudos
deixo escapar entre meus dedos
as promessas
deixo estalar entre meus dentes
a carne das vertebras

um dia desses ainda me lanço no Letes
um dia desses ainda carcomo meus olhos
me jogo num fosso de ácido

Indago-me e não acho
a resposta que gostaria de ouvir;
eu sei o que me machuca;
essa verdade me consome
Mas
Uma hora eu me levanto
e sacudo essa toalha
e todas as suas migalhas
terão um fim

mais um dia em silêncio
esperando a Lua chegar mais próxima
Quando há um filme noir rodando dentro do pote de aspirinas

Inverto os papeis por um instante. Conspiro dentro de uma personagem. Imagino que o criminoso se esgueira pra fora do meu corpo e observa pacientemente sua vitima. Inverto os sabores do sorvete, primeiro flocos, depois o chocolate e por baixo de tudo a cobertura. Isso não é uma prosa de amor. Nunca teve haver com amor. Eu tenho medo de atravessar a rua. O criminoso vil continua a espreita. Comi mais chocolates do que deveria. Tenho medo de virar uma bola de futebol. Metamorfose imperceptível das sensações. Fujo dos assuntos com o mesmo delírio que entro na sala de estar e conto historias a estranhos sobre discos voadores e musicas excepcionais. Tenho medo de baratas, principalmente das voadoras. Tenho medo de tanta coisa,que chega a ser surpreendente que eu consiga respirar por que as vezes quando me precipito com muita força dentro de mim é como se eu não conseguisse respirar e as palavras vão saindo e eu não sei o que há de errado com tudo isso mas mesmo com dor continuo repetindo os meus versos assim sem parar sem respirar me causando dores na coluna e calombos nas cordas vocais eu nem sequer penso pra falar eu simplesmente abro a boca e as palavras saem até que uma forte dor nas costas me obriga a corrigir a posição das mãos e a...e....a pensar um pouco mais. É como se a razão voltasse sem aviso. E as musicas ficassem mais compassadas. Como se as coisas estabelecessem sua ordem corriqueira e correta. Mas quando isso acontece? Quando não há ninguém por perto. Eu só consigo refletir, parar, silenciar quando não há ninguém pra quem eu tenha que montar uma personagem, um novo rosto, um novo posto, um amarfanhado particular de palavras sem sentido. Nessas horas indevidas eu apenas faço. Não penso. Eu saio. E vejo a merda toda de fora. Eu não tenho tanto controle quando imagino, ou então tenho menos descontrole do que gostaria. Eu não sei bem dizer qual é a proporção. Sequer se ela existe. Tenho medo de mim. E quando a coluna dói sinto a pistola tocando fundo na minha fronte. Ardendo quase. Sinto que perderei a hora mais uma vez, não por um desaviso,mas por simples e claro descaso. Eu nem sequer me afasto e já dou espaço pros traiçoeiros cacoetes da minha vida conjugal. Me traio e fujo. Me escondo dentro de uma gaveta e observo o investigador morder as tampas das canetas num claro sinal de raiva. Vejo suas mãos depositadas dentro dos bolsos velhos e gastos. Sinto o cheiro do seu perfume barato. E o vejo dobrar a rua em sentido contrario ao bandido. A mim. A nós. Ela sabe. Você sabe, todas as coisas que coabitam a minha zona interior sabem que ele é corrupto. Que ele foi pago pra passear sem ver. Ele apenas cumpre o papel formal que lhe deram. Sairei impune mais uma vez, mas com certeza não ilesa. Odeia minha própria metodologia. E minha certeza total e irrestrita. E o pior de tudo: estou sempre absurdamente certa sobre os absurdos que desenho.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Ma chérie, dois dedos de acido e um domingo de sol ofuscante

Era pra esquecer. Pra simplesmente jogar no lixo, dentro de uma caixa de sapatos e enfiar dentro do guarda-roupas. Era pra ser assim. Mas até agora eu não consegui. Tenho um sério problema pra esquecer as coisas que não quero, ou melhor, que quero muito. Passo o tempo pensando. Vendo tudo passar diante de mim.
Sempre fica um receio. Por isso, sempre fica um receio das pessoas em relação a mim, porque elas, pobres vítimas de minha incapacidade, sabem melhor do que ninguém que eu não sei esquecer ou que eu demoro muito pra fazer algo tão simples. Creio que você saiba disso também, porque por mais que eu tente desconversar, tente não encontrar palavras pra te nomear, você surge nas minhas entrelinhas, dentro das minhas pequenas dores matinais, dos meus contratempos, dos meus contra-sensos, da minha falta do que fazer com o meu tempo. Por que eu penso em você bem mais do que deveria. O que é muito considerando que eu nem deveria pensar. Já que você me pediu pra não pensar. Mas é só eu fechar os olhos e pronto. Está feito. A imaginação toma conta e já me imagino com você, com toda a extensão do seu corpo ao meu alcance. Você me domina e eu gosto. Você me machuca e eu gozo. Estabeleço um sadismo na impossibilidade de ter você por perto, e tudo porque eu fiz por onde. Porque eu me colei aos seus calcanhares e rasguei as barras da sua calça, numa tentativa infantil e infrutífera de te manter atada ao meu amor homicida. É, não de muito certo. Muito longe do objetivo original, você me desatou num tapa, me jogou longe, era demais. Era sufocante demais. Não havia porque praquilo tudo. Eu bem sabia, quando fora de mim eu sabia. Mas quando internalizada eu apenas fazia, apenas confiava no meu instinto destruidor de lares e de ligamentos cardíacos. Agora eu sei, como em outras ocasiões eu soube, que eu tenho um problema sério com as minhas relações. Mas eu sou um Augusto, antes um Buffon, eu sei o que me penetra, o que me amargura e rio. Faço causo. Crio mil e uma piadas. Olhe pra mim, ria comigo, de mim, vamos lá. Ria. É tão fácil. Olhe pra mim. Eu rio e choro com tanta facilidade. Me jogo tão rápido no abismo das inquietações e sempre volto pior. Mais densa. Mais esquelética. Vamos lá. Ria comigo. Vamos cantar uma canção. O que você acha? Topa o desafio? Tente mais uma vez no meu karaokê, me coloque pra tocar de novo talvez uma de nós tenha aprendido finalmente a letra e consegui ir até o fim da canção. A pistola? Não ligue pra ela, você nem mesmo imagina o que tudo isso significa dentro do meu mundo de códigos pessoais. Eu mantenho frieza com tudo que me desentende. Mas com você...é diferente. Eu faço esforço, imaginário esforço, pra ser normal. Pelo menos é o que eu digo na frente do espelho, tentando argumentar comigo mesma. Eu faço tanto esforço, oh, que triste de mim. Ela não entende. Não posso evitar um ricto, ao ouvir isso vindo de mim. Porque no fundo de tudo, lá no escuro, mora um egoísmo e um medo maiores do que qualquer outra coisa que eu tente. Eles me medem de alto a baixo e riem, porque sabem que até agora eu só falei,escrevi, bati o pé, mas não fiz nada. e nem farei. Eles me conhecem tão bem. Mas eles não sabem, que tem uma coisa estranha crescendo do outro lado da rua. Do outra lado da minha via cardíaca. Eles não sabem. É uma angústia, meu amor. Uma angústia tão grande, que fica visível nas veias saltadas, nas caras amarradas, nos silêncios e nas explosões de riso sem sentido a face dela, ou pelos menos, suas mãos fartas e pesadas. Elas tem estrangulado meus dias, me fazem olhar toda hora pra dentro, me fazem ver como a poeira e os ácaros tem tomado conta de tudo por aqui. E foi você, você que desencadeou tudo isso. Porque você, minha cara, é racional, é ideal pra mim. Tem todo o calor e toda a força pra me manter no alto, vendo as nuvens e contemplando os aviões pousando e saltando para o horizonte sem largar meus pés. Você os mantém perto dos seus. E contempla ao meu lado as mesmas visões de um ponto de vista discreto. Eu não. Eu berro. Faço poema e prosa de todas as coisas. E..
E..
E eu que tenho pra te dar? .............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
Nada. essa é a resposta até agora. Eu tenho sonhos, palavras mascaradas, palavras -cruzadas. É só isso que eu tenho pra te dar. Não posso te dar um teto, nem mesmo te comprar uma garrafa d’água. Nada, absolutamente nada. não é de se admirar, que você nem tenha cogitado a chance de me amar. O seu outro alguém tem alguma coisa pra te dar, é mais espontâneo, é sincero. Eu sou apenas um amontoado de palavras que mente pra si mesmo, que vive num submundo fantástico. Num Burton incessante. Não é de se admirar meu bem, não mesmo.
E vendo por esse lado, eu te admiro, e te admito dentro de mim com mais força. Por que além de tudo você tem a sinceridade e a inteligência de admitir em mim todas as incapacidades que eu não admito. Você consagra nos seus defeitos a sinceridade, porque você os sabe e admite. Eu apenas saboreio os meus e deixo que me carcomam. Você me dá lições em silêncio, sem querer.
Creio que você nunca saberá como tem feito diferença a angústia que me causa. Ela me purga das minhas mascaras. Merci. Merci beaucoup, minha querida.

Mobília

Ela nem sequer olhou. Conversou com quarenta e oito pessoas e não olhou. Seu perfume passava daqui pra lá. E podia ouvir sua risada, sua entonação tão especifica. E ela não olhou. Nem sequer gaguejou um olhar na direção daquela cadeira de madeira, que esta noite parecia mais pesada e mais velha do que de costume. Talvez, e só talvez, devido ao corpo que estava sentado sobre ela. Tão arraigado e triste. O ar ao redor daquela cadeira era pesado. E o corpo postado sobre ela era temeroso. Ao menor som da sua voz endurecia, lutando para desviar o olhar. Antes, para não olhar. Esquiva, esguia, habituada agora a desaparecer do seu parco campo de visão. Pobre cadeira, terá de se contentar com aquilo, com apenas ver delineada sobre o chão a sombra que tanto gostava e depositado em outros o carinho que antes lhe era destinado. Nada a declarar. Era apenas uma cadeira e sobre si um corpo inerte. Desocupado de alma. Tão vazio e especialmente perdido nessa noite. A boca quase um grosseiro corte por onde palavras pesadas e sentenciais despencavam até quebrarem no chão, pois não tinham força suficiente para alcançar os ouvidos desejados. Tantas palavras neles foram despejados que agora estão selado. Tanto escoou que agora já não faz diferença.

sábado, 10 de janeiro de 2009

De quando as impressões na parede sugerem um desenho

Hoje eu revi metade do meu passado sentimental e uma parte do seu. Nunca houve nada tão intenso nem tão estranho como o que havia entre nós. Hoje você é um pronome distante e outro amor impossível toma conta do meu coração. O que havia de falho em você, encontrei nela. E já me diverto por demais em imaginar todas as possibilidades românticas que meu pacote oferece. Mas eu não tenho intensões, com nada nem com ninguém, não quero outro romance vago ou intenso. A letra do alfabeto que me cabe, já não existe nas minhas redondezas. Mas isso já é história velha, como o são todas as palavras e códigos pessoais que eu possa inventar. Eu queria mesmo era ficar tranquila e que deixassem meu coração assim. Apenas vagando na bruma lírica das possibilidades, sem tocar nenhuma afinal. Geralmente, eu ponho as coisas em quantidades exageradas de lirismo para uma de realidade. Mas já as minhas emoções se desgastam. São tantos romances sem vida útil. Foram tantos os seus. Eu fui um deles e você foi um dos meus. As histórias antigas se repetem num carrossel de memórias descartáveis. Hoje é um belo dia para ficar longe de qualquer pistola que tente me acidentar. Hoje é um bom dia para dar adeus a todas as coisas que me prendem a esse mundo pequeno. Não, não se trata de dizer olá ao asfalto. Se trata de chegar mais perto da Lua, de dizer mais vezes o que eu não sinto. De manter longe todas essas quinquilharias que se acumulam na minha retina, todos esses nomes que possuem a minha língua e as minhas palavras. Se trata de ir embora, dar fade out na tela. Acabar o filme, Subir os créditos. Meu livro de espelhos já saturou o número de rostos. Já não há espaço pra todas as opiniões que me contém e retém. Já não há amores. Se eu não ligar, se eu me negar, não me tratem por número restrito, é apenas um momento que quero saborear apenas comigo. Ninguém há de saber que dor causam palavras acumuladas dentro do peito. Uma hora ele se rompe e descamba a gritar.E se o meu gritar, não será fácil remenda-lo.
Na medida do impossível, eu tento reaver as minhas tristezas, tomar posse delas para que nenhuma outra mulher me faça de fantoche, para que nenhuma outra me diga palavras que nunca poderá se lembrar. Eu lembro de tudo, um elefante de emoções. Eu lembro, de tudo. E esse será o meu destino flácido. Lembrar.
Essa tarde eu revi todo o meu passado sentimental, já não vejo tanto sentido em esperar que você retorne a mim, K. Vejo o que era obvio à todos, somos uma impossibilidade. O problema é que eu gosto de jogar com o improvável. Mas não haverá outra mulher que me cause lágrimas. Eu não permitirei que me revolvam as cinzas dessa forma. Não haverá mais ninguém que me cause tais desgostos. O meu coração está tranquilo. E assim o manterei. Vocês, meus pronomes perdidos uma hora vão ver do que minhas entranhas são feitas.
E ele pegou pelas mãos uma gota de chuva, levou-a aos lábios sem sentir doçura, levou-a as lábios como se fosse estranho. Deixou-se cair sobre a quentura do asfalto, deixou-se levar por um sopro do vento. O amargo das manhãs se dissolve sem tremor. Apenas é o início do seu novo livro. O livro das suas indecisões está selado. E ele foi-se com seu casaco marrom e seu desenho e seu Drummond no bolso.
Dois passos mais próxima da Lua.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009


Dentro das gavetas do armário do banheiro mora um homem chamado bomba

As crianças são sempre muito cruéis. Não existem verdades absolutas, nem mentiras. Existem coisas que se encaixam e outras que não. As que se encaixam você aceita ou contesta, as que não você ri. Uma lógica simples e por isso mesmo cruel,para o mundo dos adultos, tão cheios de meias linhas, meias palavras, sentidos ocultos. Acho que ainda sou meio criança, e creio que isso me torna duplamente cruel. Primeiro por não ser mais criança e continuar a enxergar (em muitos pontos) como uma, segundo por ser naturalmente caustica e cruel comigo e com tudo ao meu redor. Uma espécie de ironia nada convincente. Uma tristeza descabida e mórbida. Feroz. Muitas palavras caberiam numa folha pra tentar dar nome aos meus métodos. Mas não desperdiçarei meu tempo com as nomenclaturas. Já perco tempo demais pensando nelas. Tive meu dia de cão. Cheio de negritude por ações minhas, convoquei as trevas e me esqueci que uma vez convocadas elas viriam. E elas não costumam avisar a hora, nem telefonar um pouco antes de tocarem sua porta. Elas simplesmente dizem “Salut” e vão se sentando no sofá e abrindo as gavetas da sua cabeça. Riem das suas fotografias e dos seus poemas, mesmo aqueles que você só sonhou escrever. São bem folgadas. E elas não costumam ir embora quando sutilmente você berra “Fora”. elas param o que estão fazendo e por um instante ficam serias para depois caírem numa gargalhada imensa e profunda. Assim são as trevas, os dias ruins, os dias de esmagar teclas e pedaços de papel. As crianças não tem esse problema. São sempre tão diretas, não abrem portas para estranhos, não dizem meias verdades. Elas mentem mesmo. E pronto. Simples assim. Elas não ficam tristes quando ouvem essa ou aquela musica. Elas esquecem. Foi dado a elas o privilégios do Letes. Inveja. Mas se assim mesmo algo ruim se bater sobre suas cabecinhas elas ainda terão a morna mão de suas mães. Depois de um tempo, você vê como a vida era simples e fácil, como era tudo uma questão de sinceridade e não de diplomacia. Agora é tudo uma questão de sorte, de pensamento e de mascara. Eu não sei fingir muito bem. As pessoas sabem quando as trevas me visitam. Sabem que eu não tenho mais nada para dar naquele momento. Elas me olham através das pilastras de sustentação da sala e devem pensar “ merda”.
Realmente merda, esse é um daqueles dias que até os sorrisos arrancam sangue. Por que você percebe finalmente até onde se estendem os braços da sua loucura, isso mesmo, sua loucura. Que sempre é você que quer o que não pode ser seu. Que sempre estraga os brinquedos antes que o tempo os faça. Que é sempre você que espalha as migalhas de pão da toalha da cozinha no chão sem aviso. É sempre você. Não há mais ninguém. E por mais que chore, que sua cara inche,ninguém virá mudar seu coração de lugar. Ninguém virá desengatilhar a pistola na sua testa. Ninguém mesmo. Porque você feriu a todos com suas palavras ocas, suas atitudes malas, e tudo estava tão claro. Você era o erro, todos sabiam, só não queriam dizer a você. Porque sabem o quando é sensível, e que isso só poderia partir da sua rodoviária e de nenhuma outra.
E você simplesmente dá as costas. Não tem coragem suficiente para resolver, para dizer que sente muito, até porque isso não muda nada. sufoco. Sufoco. Porque diabos retirar o ar daqueles pulmões parecia tão certo? Porque se cobriu de gloria e de vitima enquanto tentava embalsamar aquele corpo, que você julgava um cadáver? Afinal de contas com quem você está falando? as paredes não vão te responder nada, nem essas folhas de papel, nem suporte algum que você pense. Algumas respostas são tão simples que chegam a doer. Essa é uma delas. Olhe pra mim, vamos lá olhe pra mim, sim eu, aqui do outro lado do espelho, da tela, da janela, da parede, de onde a sua imaginação quiser. Apenas se debruce sobre mim um instante, com atenção, quase num beijo que eu vou te dizer meia dúzia de palavras que você com certeza já pensou, ate rascunhou num desses seus poemas, mas que botou na boca de outros. Pronto?
Sabe porque era tão importante, ou ainda é, retirar o ar daqueles lindos pulmões? Sufocar aquele riso até ele ficar seco? Porque você tem tanto medo de ficar só, tem tanta necessidade de ser amado por alguém, que beira a doença a sua doação. Você nem mesmo sente o que diz, você sente a dor que diz, mas só isso, porque se habituou a esse masoquismo cretino. A essa perversão. Tem tanto medo das coisas simples,tanto medo de errar, de que riam de você de novo, que planta pequenas mentiras, pequenas animosidades que não sente pra ter o que fazer. Sente-se tão só que precisa agarrar a primeira pessoa com tanta sofreguidão, que a estrangula antes de completar a primeira frase. Antes que ela tenha chance de te salvar. E sabe o que é cômico nisso tudo? Ai, é que elas riem de você. Da sua falsa modéstia, da sua exagerada felicidade. Da sua infantilidade. Elas riem de você o tempo todo. Todos cochicham quando você passa, porque eles sabem da sua obsessão. Eles sabem da sua crueldade. Que há em você duas faces e que ambas são ridiculamente pobres.
Opa, ta inteiro ainda? Digerindo? Quer voltar a conversa das crianças? Acha mais saudável?
Merda. E se eu me esquecer disso tudo pela manhã? Se eu simplesmente não conseguir ser tocado por esse sarcasmo? Se eu não conseguir mudar? Será que ainda haverá um você algum dia? Tenho quase certeza que não, que serei sozinho, afastado de todos que podiam ter me dado algo. Que eu os afaste com minhas indelicadezas certeiras. Seria muito mais fácil voltar a arremessar cadernos, livros, pedaços de madeira e cadeiras para aliviar a raiva. Agora as gavetas foram abertas e não há como fechá-las novamente sem derrubar algumas coisas, jogar outras fora.
Sorte das crianças...porque suas mães arrumam as gavetas.

Pequena história para uma menina sem olhos

Havia uma menina que vivia de olhos fechados e havia uma risca no meio da sala, que dividia entre a casa do pai e a casa da mãe dentro da mesma casa. Confusa divisão de gostos. O lado do pai cheirava a miolo de acém e o som azulado da TV imperava. O lado da mãe cheirava a flores e a música tinha pernas e ficava dançando pra todos os lados e com todas as coisas. Isso a menina sem olhos podia ouvir,mas ela não sabia qual lado era qual, a não ser pelo cheiro. O problema é que a sala era pequena e ela se confundia. Ficava andando de lá pra cá encima da linha. A linha era branca, mas podia ser azul, verde ou amarela. Ela se equilibrava e tentava pensar em qual lado escolher. Os dois tinham suas vantagens e desvantagens. Se agachava sobre a linha e olhava sem ver os mundos a sua disposição. O tempo passava e nada dela se decidir. O tédio começou a corroer os seus pequeninos dias. Pois até as crianças ficam entediadas. E não havia nada para fazer além de pensar,escolher, pesar. Uma pequena paranóia cresceu no oco dos seus olhinhos. Se ela pudesse ver como eram os mundos poderia escolher e sair da chatice da linha. Que idéia genial! Se ela pudesse ver! Uma coisa tão simples, que todo mundo faz. Por que ela não poderia? Tentou abrir seus olhos, tentou ver. Mas só conseguiu ver o de sempre, sombras. Os dias foram passando e ela continuo a tentar abrir os olhos, mas os músculos estavam atrofiados. Todos os dias ela tentava abri-los,um certo desespero tomou conta de seu coraçãozinho, a pistola começou a engatilhar cedo bem no meio de sua testa. Ela tentou abri-los com os dedos, mas só consegui sentir uma dor lancinante. Os buracos ocos se alargavam até ocuparem metade de seu rosto delicado. Pensava, pensava. Não havia mais como abri-los. Que terror tomou conta dela. Os mundos a sua disposição pouco importavam naquelas horas e o pior de tudo é que ela nem se lembrava mais porque os havia fechado. Talvez se lembrasse conseguiria abri-los, como por mágica. Mas ela tentava lembrar e não conseguia. O cansaço sacudiu seu corpo. Cansou de pensar, de esperar, de tentar, de lembrar. Deitou-se no meio da linha e dormiu. Ficou assim dormindo sem sonhar por muito tempo. Muito tempo. Uma hora cansou de dormir, porque era igualmente tedioso, a mesma coisa de estar acordada. Mas o tempo havia passado, suas pernas eram maiores e o buraco dos seus olhos também. E havia agora pequeninas linhas abaixo deles. Podia sentir com a ponta de seus dedos,que agora também tinha linhazinhas. Se levantou e bateu a cabeça no teto. Agora ela sabia que havia um teto. Apurou os ouvidos e o nariz: a música ainda dançava e o azul da TV cheirava a acém. Nada havia mudado. Mas ela já não era a mesma,mas a duvida, ah, essa continuava a mesma. Pensou. Mas desistiu o martírio novamente não. Puxou um dos seus braços com força e depois uma perna e jogou-os para um lado. Puxou os ocos dos olhos e jogou-os para o mesmo lado, o que sobrou tombou para o outro lado. Pronto! Estava feito, tinha os dois mundos. Os dois mundos? Estava pela metade de novo. Insatisfeita. Os ocos de seus olhos nada viam,as suas pernas não dançavam e sua boca não comia. A linha permaneceu vazia. Mas a musica perdurou. A luz da TV perdurou. A menina não. Ela pensou demais sem pensar. Fechou os olhos sem motivo e não pode mais abri-los. Pobre menina sem olhos...
De quando a solidão leva o cachorro pra passear
( ou como a morte nunca combina cores quando sai de casa)

Chove
Os pingos em rajadas atacam as estruturas citadinas. Seus corpos líquidos se esmagam com violência sobe todo e qualquer objeto ou sombra. Tenho febre e a cabeça arde num sono pesado, por mais que o corpo esteja por inteiro presente dentro das roupas, piscando, suando,por dentro ele dorme. Cada sílaba sonhada precisa de um corpo e eu não sei como fazer isso. É pouco o espaço pra tanto corpo que se avoluma dentro dos meus pensamentos. A casa vazia não me dá um consolo, tudo está estritamente quieto, nada além dos gritos pulmonares que lanço no vácuo ocasionalmente.
E ele queria a profundidade do mar Egeu num copo d’água.
E as frases desconexas se entreolham num momento de espasmo.
E os pulmões lançam rajadas de germes no ar empoeirado da tarde ainda que esta esteja tão ou mais doente que os próprios germes. Um dia atrás do outro, numa comitiva cinza de silêncios e vácuos ainda não compensados.
Eu preciso de alguém pra preencher nem que seja momentaneamente o meu espaço. Assim me desligar de mim por um tempo. Mesmo que seja um dia. Um dia na eternidade da existência já a compensa.
E ele queria a confirmação das anotações de cristo por um teste de caligrafia.
Ele estava no alto do prédio e corria como se suas pernas fossem arrebentar naquele instante. Seus braços perpendiculares a seu corpo em disparada faziam movimentos de máquina. As estruturas metálicas passavam aliviadas deixando nele o cheiro velho do ferro. A borda do prédio já pedia socorro. Socou o pé sobre ela dando impulso as asas que não tinha. Num instante seu corpo estava içado ao alto.
Chove
Cada gota cospe em seu corpo a desintegração de sua existência mínima e ininterrupta. Seus braços no espaço vazio das paredes de atmosfera tentam arranhar rebocos, mas nuvens não podem ser arranhadas. Apenas vistas. Seu corpo cai. Sua camisa xadrez movimenta-se canhota. Visto de baixo é uma pipa com uma rabiola estranha. Suas pernas se agitam, como se quisesse andar, mas não a chão. Ainda não. Pode ver os andares descendo um a um na sua retina. Elevador invertido de serviço. As janelas, vê seu próprio reflexo em uma delas por um décimo de segundo, pouco tempo pra guardar na lembrança. Toda a sua vida passa e não foi muita. Apenas dois ou três momentos que se lembra ocasionalmente. A manhã e o sabor quente e suave do café, o pão sendo esmigalhado por suas mandíbulas tortas e a carta que havia escrito para um de seus queridos pronomes.
E ele queria provar a existência de Deus usando uma colher de heroína
E ele queria mostrar a existência dos anjos rangendo os dentes pra Lua
E ele queria rasgar os jornais de Domingo com a ponta das pálpebras
Todas as loucuras imaginadas, suas metáforas e códigos pessoais pareciam pequenos e discretos agora a tantos palmos do chão. A calçada de linha cinza infame tornava-se largo oceano de asfalto e já podia sentir os vapores do carbono evaporados subindo aos céus transpassando seu corpo.
Os pulmões meus ardem numa tosse interna. A febre parece mais calma, porém ainda incômoda. As horas passam e eu nem me dei conta. As panelas ainda estão sobre o fogão, mas este não foi aceso. Atendi o telefone e vi a chuva no vitrô antes de me dar conta dessa concretude.
E ele queria deixar todas as marcas que podia pelo mundo
E as frases desconexas se juntavam num abraço
E num abraço macio de queda juntava-se o corpo ao oceano de cinzas variantes, suas vagas o engoliam vértebra a vértebra, osso a desgosto, até se tornar um grão de areia pequeno e ardente no meio da vaga cristalina de passantes e guarda-chuvas, pequenas estrelas do mar multicoloridas.
Chove
E a rua lavada escoa aqueles pensamentos e sussurros que ninguém ouviu, Cidade dos Anjos seria reprise, mas ele não se levantou do oceano, não foi cuspido de volta ao asfalto de passos. Continuo dormindo, letra a letra. O corpo estava lá, mas por dentro um sono quieto e quente o dominava. As gotas de chuva se desintegravam alheias ao sono em seu rosto pétreo.
Enquanto colocava novamente as panelas no fogo, embora não as tivesse tirado, coloquei-as novamente para ter certeza que não esqueci nenhuma, uma estrela cadente passou pela minha janela e sorriu. E eu nem mesmo sabia que estrelas possuíam bocas, mas se a Lua pode sorrir, com riso de mulher, porque diabos uma estrela também não o faria. Ela passou de pontas eriçadas e sumiu do meu andar e deitou-se no negro do asfalto. Adormecida.
Ainda
Chove
E as frases desconexas escoam com a chuva pelos ralos, deságuam nos dutos de esgoto e bóiam com outras quinquilharias da memória cheia de resíduos e poetas atrevidos.
Agora o céu parece ter parado seu movimento gástrico e cessou o vômito sobre a cidade. Parece calmo, embora tudo ainda esteja tingido de cinza, não mais gotas. Os prédios absorvem em sua cor as manchas de chuva, tornando-se por algumas horas mais vivos, mais intensos, menos prédios. Os fios molhados de telefone, de energia, os gatos de telefone, TV a cabo e outros fios pendem lacrimejados. Até os pássaros pendem lacrimejados. O alvoroço cessou. E aquela estrela ainda sorri na minha janela.
Acendo o fogo e deixo o ventre das panelas se aquecer, depois da chuva até mesmo elas merecem um certo consolo.
A casa vazia ecoa cada suspiro, cada crepitar do gás, passo sem chinelo ou assovio na rua decrépita. Depois da chuva todas as coisas parecem cansadas e dormem, dentro de seus corpos reside o sono do primeiro dia do ano.
Estrangulador de passarinhos

Eu fiz tudo errado com você, K. meu querido pronome. Te dei uma letra quando você não queria nada. Fiz todo sufoco, comprei os sacos plásticos e coloquei nas nossas cabeças,bem juntinhas, e apertei e comecei a falar e segurei suas mãos. A pistola tinha que engatilhar, tinha que parar. Mas só eu queria morrer. Só eu não tinha perspectivas naquele momento, você tinha todas e mais um pouco, eu era apenas uma prova de que seu mundo era perfeito. Eu era um exame. Você passou. Eu reprovei de novo. Tenho síndrome de Caim e Abel. A primeira vitima e o primeiro assassino dentro do mesmo corpo. Matando e morrendo varias vezes do nascer do dia ao por da lua. Tenha varias síndromes, meu querido pronome. Assim como há vários pronomes na minha lista. Todos sufocados,mas salvos. Todos furtados de minhas mãos. Todos fugidos. Desintegrados na minha memória. Falo em sussurros ao telefone, no meu telefone imaginário. Deixo a minha paranóia sair, se desenvolver, me envolver. Deixo que ela me toque e consuma. Há muitos anos temos esse caso. Mas só hoje ela mostrou seu rosto por completo. Antes ela havia mostrado apenas os tornozelos, um detalhe dos braços, dos lábios nauseabundos,das vestes desintegradas. Me sinto amavelmente doente essa manhã. K. eu te fodi. Eu me fodi pelo excesso. Não era a intenção,mas eu sou um psicopata de emoções. Tudo ao meu redor deve ser consumido até o ódio. Não deve haver desperdício. E mesmo assim eu não me sinto satisfeito. Eu não me sinto. Eu não sinto nada. nenhuma forma de prazer. De comoção. Nada. apenas um vazio, um desgosto. Como - mais uma vez- um personagem de Huxley, em Contraponto. Todos aqueles personagens sou eu. Toda aquela escória burguesa, toda aquela pobreza me habita. Fazem a minha carne. E na verdade, não sinto dor por você, sinto por toda a sensação. Pelo sentimento desmenbrado,obliterado. Por toda a razão que foi esquartejada, por todas as palavras que não levavam a lugar nenhum. Ao abismo. Apenas ao abismo. Mais um vez estou parado a frente dele. Ele sorri. Eu o comprimento. Travamos conversa novamente. Mas já não sei se isso me sacia. Se simplesmente me arrebentar e voltar como se nada tivesse acontecido basta. Creio que não. Eu não quero isso com você. Toda essa doença já foi longe demais. Será possível que eu matarei mais um pássaro nas mãos por este detestar a gaiola? Será? Hoje não. Você bicou meus dedos com força. Não consegui fechá-los. Você lutou por sua existência livre. Devastou a carne de minhas mãos e dessa forma forçou-me a parar. A cessar o movimento mortífero. Mas isso não me impede de apodrecer. Podre. Morte. Renascimento. Eufemismos. A roda lexical da vida é bem mais extensa que a da pintura. E eu já não demonstro tanto apego pela minha sorte, nem tanto amor pela minha morte. Demonstro apenas a fraqueza secular que vinha me corroendo e que agora precisa parar, precisa sair. É insuportável tanta dormência. Tanta melancolia. Demência. Pelos deuses só tenho vinte e três anos! E sei que não terei a dádiva da morte rápida, o corte do caule no auge da arvore, pois minha decrepitude é precoce. K. me desculpe por toda essa merda, eu sei que por mais que me desculpe em palavras, serão as ações que realmente vão fazer alguma diferença. Mas seja dura, seja dura comigo, só assim não sucumbirei ao desejo de estrangular pássaros novamente.
Uma revoada de penas pretas cai sobre meu colo...um surdo revoar, remontar de corpos no espaço. Bicos anestesiados arrancando minha carne velha dos ossos, não, não é um renascimento. É um choro convulsivo. Uma anedota sobre a minha vergonha. Sobre a necessidade de me despir do meu ego,mas não será você, meu pronome, que fará isso. Apenas seja dura. Apenas seja pedra. E deixe que eu abra docemente meu crânio nas suas frinchas. Deixe esse caldo de tolices escorrer, mas não suje os pés nele. Pode ser contagioso. Eu já não sei até onde são minhas essas palavras. Eu queria fugir, não ver seu rosto. Não ter que encarar meus erros. Queria voltar pra minha gaiola, mas ela está quebrada. Eu posso fugir de mim a qualquer momento. Talvez a minha síndrome de Mary venha desse medo da gaiola. De ficar sem ela. É fácil cantarolar como num desenho animado dentro de uma gaiola, o gato malvado sempre é barrado pela vovó. Mas não há gatos aqui, nem vovós. No máximo há pássaros e assassinos e frustrados, que pela ironia da existência coabitam a mesma casca. K, eu não sei mais o que dizer. Tento me explicar, mas pareço mais ridículo e mais medonho. Mais irreal...
Tenho pânico de olhar nos seus olhos essa noite e me ver refletido ou pior ainda não me ver e ter a certeza de que já estou morto. Que sou um vampiro de sensações.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Karma father

Mais uma vez ele chega sem aviso. Me olha por sobre os ombros. Posso sentir seu hálito. Olho contrariado. Odeio pessoas me observando do nada, pra nada. ele faz um comentário qualquer e puxa um banquinho de plástico branco debaixo da mesa. Me vejo obrigado a parar minhas ações e escutar sua narração da semana. Como o chefe é idiota, como isso, como aquilo. Os planos e as certezas e as perguntas e as incertezas. E no fim de cada comentário um “Não é?” meneio a cabeça afirmativamente ou digo sim. Ele sabe que eu odeio essas conversas. Ele sabe que eu odeio 90% das vezes que ele abre a boca pra falar comigo. Mas ele insiste. Ele está tão carente. Ele é tão parecido comigo. Pai e filho. Filhos da mesma frustração. É genético. Nascemos para achar que somos super-homens e toda noite constatamos que não passamso de formigas, de restos de reboco caindo ao toque de qualquer mão. Ambos somos insuportáveis. E sabemos disso. Pelo menos sabemos isso um sobre o outro, de nós mesmos eu já não sei. Todos os seres humanos, tirando os “ascetas” negam a sua deficiência. A sua mecânica carência. Essa necessidade de falar. Esse vicio da boca. Essa latrina que adora despencar sobre os outros as glorias, as verdades e as delicias de nossa existência. Disso tudo estou ficando farto a começar por mim e por ele. Somos faces da mesma personagem. Temos as mesmas necessidades de louvor. Mas eu não tenho paciência, justamente por saber que infrinjo a outros essa mesma tortura do meu ego. Somos indispostos. Ele será sempre meu lembrete, meu Farnese escondido. E eu sua visão periférica e terrível sobre a juventude, a mascara da imbecilidade, do impulso turvo que ele quer esquecer. Eu sou tudo que ele não queria que eu fosse. Ele queria um desafio,eu fui menos que um caça-palavras. Frustrado. Sua prole não estava a sua altura. Sua prole era fraca. Eu sou fraco. Eu não sou feito de ossos maciços nem de alicerces anti-aéreos. Eu sou apenas isso, um saco flácido de palavras e pequenas emoções. Apenas isso pai. Nada mais que isso. Eu poderia ser mais, senão fosse a trajetória autodestrutiva que escrevi. Não tenho intenção de desviar do muro meu caro. Eu quero bater, sumir, fazer desaparecer qualquer traço em mim que recorde você. Me tornar um estranho. Já somos estranhos um ao outro. Só não admitimos isso em palavras na mesa de jantar. Minha coluna dói envergada sobre a mesa, tentando me esconder do seu olhar perscrutador, que tenta invadir todos os meus resíduos em busca de uma resposta para todo esse desconforto que sentimos um na presença do outro. Não tente. Pare de tentar. Eu não vou tirar a chave pra que você veja através da fechadura. Não mesmo. Eu não sei o que há do outro lado, porque você, justo você haveria de saber? Tento de todas as formas descontar em você, de dar toda a culpa e credito por essa bagunça que me tornei. Mas eu sei que essa é só uma forma infantil de cobrir o problema. Eu não queria que fosse assim, mas essa minha indisposição faz parte da personagem que construí pra atuar com você. Já não posso modificá-la. Quer dizer,não quero ter esse trabalho. E também não faz mais diferença. Todo o estrago já foi feito. A casa ruiu por dentro. Os cupins destruíram tudo. Você continua falando enquanto meu olhar vacila entre a janela e as canetas sobre a mesa. Você sai discretamente, ouviu a voz de minha mãe na cozinha. Sai. Deixa o banco na mesma posição e depois me chama para o almoço. Mais uma conversa que nunca existiu.
Síndrome de Mary Pops

Tudo precisa estar bem. Maravilhosamente bem. Eu sei, eu sei que tem que ser assim. Os passarinhos cantam e todos me amam. Se não fossem os passarinhos essa poderia ser uma fala retirada de um trecho da bíblia ou de um filme da Mary Pops. Mas não, são palavras minhas, ainda que não ditas são minhas. Ardendo dentro da minha cabeça essas palavras agridoces dançam e cantarolam alimentando com colheres do Mickey as minhas paranóias. E nessas horas as paredes do meu quarto e as quinquilharias acumuladas não fazem nenhum sentido, porque elas não podem explicar nada. Elas não podem ME explicar. Fico andando de um lado para outro tentando achar a solução para o enigma que me perturba,mas ele está tão enraizado...tão oculto e ao mesmo tempo tão aparente. Eu preciso ouvir e viver numa esfera de amor pleno. Olhando assim até parece uma coisa meio hippie,mas creio que tenha mais a ver com a solidão. Com esse imenso medo de ficar só, e por isso mesmo me torno cada dia mais solitária. Mais emaranhada dentro de mim, dentro das fantasias coloridas e perfeitas. Me sinto Midas. Quero ser especial dentro de um mundo caótico e cinza. Quero que a minha mãe resolva meus problemas,mas eles se tornaram maiores do que um pirulito que caiu no chão ou um puxão de cabelo. A minha frente há uma janela, e dela eu poderia me atirar. Mas não adiantaria muito, a casa é apenas um sobrado. Me renderia apenas ossos arranhados, hematomas e idas ao psicólogo. Esse último não seria má idéia. Talvez resolvesse alguma coisa ou talvez ele me cedesse uma garrafa de whisky, para juntos entendermos os problemas da humanidade em meio a risadas, troças e vômitos. Uma perspectiva bem cínica,até mesmo para mim. Mas o que mais posso fazer? Minha cabeça está dando giros e mais giros, como numa roda gigante com a alavanca quebrada. Lá dentro eu grito,pedindo pra parar,mas ela só gira, vertiginosamente. E ora vejo o chão, ora o céu. Ambos em manchas deslocadas. Eles se transpassam, já não sei quando um começa e o outro termina. A única coisa que sei é que me descobri mais uma vez obsessiva. Quando isso vai parar? Quando eu vou conseguir parar de escrever discursos imensos e lindos em guardanapos de bar e de agir como uma mendiga? Lutando e rasgando sacos de lixo preto na busca de migalhas,transformando qualquer pedaço de pão num croissant. Minha imaginação é cínica. Mas essa doença de alegria estupenda e paradoxal pobreza me detona por dentro e por fora. Hoje eu não quero sair de casa, não quero trocar de roupa, nem ouvir nenhuma das minhas músicas defuntas. Não quero abrir meu guarda-chuva preto no meio da rua e dançar. Não vejo motivos para comemorar essa minha desprezível condição. Essa angústia que me domina...hoje eu não quero ver pessoas, só ligar para o Danilo e ouvir todas as histórias sobre carros e teses sobre amores defuntos e mal nutridos. Eu só quero achar a causa da minha amnésia. Porque definitivamente eu não nasci para ser isso que vejo no espelho. Que leio nos e-mails. Nos rostos alheios.