quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Histórias para botão dormir

Muitos dias se passaram desde a última vez que eu o vi. Reconheci de longe seu rosto, embora não saiba de que lado ele tenha vindo. Apenas parou as minhas costas. Quando me virei para procurá-lo, já o havia encontrado. Foi como ver um espelho, porque é sempre muito bom (e as vezes assustador) ter alguém que te conhece tão bem. Que sabe as palavras antes que você abra a boca. Mas por uma descrição ou por uma analise silenciosa permite que você dispare palavras, frases, seqüências inteiras de monólogos dignos de um papagaio. Ele se limita a rir discretamente dessa sua mania, ele sabe que você será assim até o último dia. Mas a grande verdade, é que ele não se incomoda. Sabe que você é assim e pronto. Vocês sentam lado a lado e conversam por horas a fio. Sobre todas as coisas, sobre as mesmas coisas e sobre coisa nenhuma, todos esses assuntos maravilhosamente intercalados, como em “encontros e desencontros”. palavras aqui desembocam em outras palavras na ponta de lá. Brincando de telefone sem fio. As horas passam amaciadas por um certo conforto. Existe alguma coisa que o tempo não destrói. E essa é uma dúvida estranha: como é que o tempo escolhe o que vai deteriorar? Quer dizer, ele escolhe? Ou simplesmente bancamos o pequeno príncipe relaxado? Deixando a rosa por lá ao relento? Difícil dizer, visto que eu sou uma pessoa nitidamente descuidada como tudo. As coisas me chateiam com clareza, saem da minha história como personagens rasos de um livro muito grande. Quando você percebe, já sumiu. Botão A, botão B, botão C. as pessoas se resumem a botões e siglas na maquina da memória. E de certa forma até fica mais fácil contar uma historia assim, montar um roteiro. As pessoas como botões e alavancas de uma engrenagem estranha, que falha e as vezes corre com as coisas. Não tem um ritmo definido. Mas tem uma sonoridade distinta. Botões...
O botão A estava apaixonado pelo Botão B. O botão B resolveu dar um fora no Botão A, disse que precisava de uma pessoa mais louca, menos certinha. O botão A condoeu-se todo e saiu a perguntar a todos os outros botões se ela realmente era tão certinha assim, se não havia algo de maluco dentro dela. Os outros botões se entreolhavam e respondiam em coro ao final de um momento de reflexão (que não durava mais que um segundo, afinal de contas eram botões, diabos! Tinham trabalho a fazer, e sempre estavam a espera que alguém os pressionasse) “ Sim, você realmente é muito meiga, certinha e tal, mas isso não é ruim”. ela olhava com aqueles olhos miúdos de botão e não sabia o que dizer. Ficava na frente de um espelho se olhando para saber se era realmente tão frágil, tão fofa. Ficava procurando a louca dentro dela. Mas não achou, afinal você não acha o que não tem. E muito embora loucura brote bem no meio do miolo de um sujeito, ela não saberia separar um tipo da outra. O botão A tinha uma amiga, o botão C que dava para todos os outros botões, alavancas, engrenagens, fios de graxa e afins e que estava apaixonada pelo botão D, que tinha uma linha com outro botão já. Usando de suas artimanhas,o botão C deu para o Botão D, que dez minutos após ter dado cabo do trabalho, aprumou-se e foi-se embora. Deixando o botão C com reflexos imensos de alegria.
Os botões A e C conversavam, dividiam suas pequenas dores, tentavam conquistar seus respectivos botões, armavam conversar. Um dia o botão C deu para o botão B na cara do botão A que contou tudo para o Botão D, que disse “ Foda-se”. O botão A saiu gargalhando e não perdeu um dia se fazendo de vitima para todos os outros botões. Como o botão C é isso, como o botão C é aquilo. Na verdade, se poderia dizer que o botão A estava mais pra agulha do que para botão. O botão C e o botão B disseram “Foda-se”. Ai foi um inferno, um tal de picuinha daqui, cara amarrada dali, grosseria daqui, não quero mais dacolá. Linhas foram tecidas, cortadas, atadas, até que tudo virou um emaranhado só, de pedaços, restos e incongruências. Os outros botões apenas olhavam e montavam bolões de apostas pra saber no fim das contas qual botão ia sair da camisa. Até agora nenhum botão saiu, mas toda hora tem um remendo, um detalhe para apurar.... E o botão D continua na sua linha respondendo “foda-se” pra quem vem lhe encher o saco.
E,
No fim das contas os botões fazem sempre as mesmas coisas. Eu faço sempre as mesmas coisas, o dia, tudo possui uma rotina, mesmo que seja grotesca, como é a rotina das relações humanas. Sempre a mesma cantilena, sempre a mesma pistola apontada pro meio da testa. As pessoas curtem mesmo pintar um alvo na testa e berrar “vamos lá, quem acertar primeiro, quem acertar primeiro!”
Histórias como essa, a gente vê a cada lata de lixo. Os objetos tem a mesma rotina. Apenas não foram dotados de boca, o que nesse caso é uma benção, nem gostaria de imaginar minha geladeira reclamando de artrite e de como o fogão recebe mais atenção e coisas desse gênero. As pessoas poderiam ser um pouco mais parecidas com os objetos ou pelo menos com personagens de filme Noir, que sempre falam pouco e são sempre muito pontuais. Dizem extremamente o necessário, não ficam se preocupando em preencher linhas e linhas e linhas, contando o número de linhas ou coisas desse tipo. Se você pegar todos os diálogos de um filme como “gosto de sangue” não me surpreenderei em ver que os diálogos todos juntos de cinco personagens não preenchem nem cinco folhas.
E ele resolveu ouvir todas as teorias caóticas que saiam da minha cabeça, até dá pra imaginar meu tampo encima do tampo da mesa, e as coisas saindo e tomando vida, fazendo demonstrações quase circenses das palavras. Ele deve olhar por cima da minha testa e rir horrores. Porque ele não tem histórias como as minhas, nem as que eu ouço nem as que eu invento. Então acabo sempre servindo de ponte entre ele e esse estranho mundo fantástico de inquietações humanas.
Nessa hora os botões e agulhas dormem, enquanto lhes dá de vez em quando uma senhora dor nas costas, uma pontada ou qualquer coisa desse gênero. O botão A deve estar rabiscando algo num caderno, ou inventando uma peça de teatro em que o botão B morra esgoelado. Será que botões também se atiram na frente de carros?
Ele não sabe me responder. Entra no ônibus e volta para seu mundo matemático e probabilístico. Eu olho sem querer muito para a rua, é sempre um caminho torto de volta pra casa. E um passo mais perto da Lua. Será que uma hora ele saberá me responder?

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