segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Quando sacos pretos escondem pistolas gastas e dores na coluna

Ele anda pela avenida sem perceber os carros, meio disparatado, alheio. Uma música ecoa na sua cabeça e os versos caberiam em qualquer um dos momentos de sua vida. Em qualquer uma das bocas que escarrou. E eu ainda gosto dela, mas ela já não gosta tanto assim, a porta ainda está aberta pra que ela entre e traga sua luz. Não há mais luzes onde ele está, muito menos janelas que pudessem se abrir. A pistola estava descarregada. Não havia mais estalos. Pior do que as dores frívolas por amores frágeis era agora essa ausência. Esse nada. andava pela avenida sem perceber os próprios passos. Se alguém o parasse naquele momento e perguntasse o nome de uma rua ela não saberia responder. Para não aparentar arrogância diria com certeza que não morava ali e que sentia muito. Mas a verdade é que morou ali sua vida toda e conhecia com a palma de sua mão cada tijolo daquele lugar. Olhava ao redor. As mesmas roupas no varal, os cachorros latindo nas sacadas. Só mesmo ali, para alguém manter um fila brasileiro dentro de um cubículo. O cachorro latia com as patas postas na varanda. Saldava-o. pelo menos parecia isso dentro da sua imaginação torpe. Mas aquilo não era importante. A padaria. A imprensa oficial. Seguia sem querer o caminho da estação de trem. As casas ficavam mais simples. Os prédios mais altos. Aquele era e não era o lugar da sua infância. havia até um cheiro que ele podia sentir vindo da antiga doceria. Era tão famosa,disputada nas datas de aniversario. Era muito caro ter um bolo feito ali. Sua mãe havia comprado algumas vezes nos seus aniversários de criança. Assim como ela comprava caixas fechadas de biscoito de chocolate. Isso era antes de venderem em pacotes de 164gr. Antes das coisas ficarem tão rápidas. Ele nem se lembrava dos sete anos, passou dos dez aos quinze. Dos quinze aos vinte. E agora estagnado nos vinte e três não tinha muita certeza das coisas. Esperava já ter uma casa e um cachorro e já ter trocado de mochila pelo menos umas trinta vezes em viagens sem tempo determinado. Mas nada disso aconteceu. As coisas mudaram ao seu redor. E ele é o único que se lembra das coisas como eram antes, como era a casa antes da reforma. Ele se lembra da pose dos tijolos, mas não do rosto das pessoas. A vida sua era uma grande caixa de Lego. A rua vazia. O viaduto sempre lhe lembrava um desenho animado apocalíptico japonês. Aquela curva em preto e branco. Como uma enorme contorção de coluna da cidade. Ela sofre de bico de papagaio. Cinza e dolorida ela se contorce em viadutos,rodoaneis e pontes. Angustiantes associações. As arvores estão desfloradas. Seus galhos são como braços velhos com pele pendente. E até mesmo essa pele é seca. O caminho da estação de trem, estação de tempo é curto,mas ele o transforma num percurso de Santiago. A sua infância indo e vindo de trem da casa dos tios, tios-avós de sua mãe e primos de segundo grau. Entre salgadinhos de queijo e descascadores de cebola e revistas de colorir vendidas em sacolas pretas no meio da gente toda. Aquela é a confusão da sua infância. um acervo de desventuras e cenas perdidas. Não há um roteiro. ele passa seu bilhete único e entra. A estação parece tão velha. Tão pequena. Tão feroz na sua rabugice. A antiga fabrica da Antártica sacoleja seu velho esqueleto conforme o trem passa. Em pé no meio das pessoas. Um corpo a mais naquele emaranhado. Um fio num novelo de lã. Ele olha o reflexo de seu rosto e não vê nada de mais. Nunca se achou bonito,na verdade sempre se achou bem estranho, triste. Mas o que realmente há de triste nele é que não consegue ver o menino em si. Não consegue ver nada além de um amontoado de linhas e rememorações. A pistola gastou-se. A última bala foi disparada no ar e ela não fez curva, nem caiu. Se perdeu. Ele não se matou. Ele só se perdeu. E o trem segue no seu sacolejo enfadonho.

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