terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Imaginarium I: Quando Isabela dormiu numa caixa de sapatos

Isabela colecionava caixas de sapato. Era estranha a sua mania, pelo menos era isso que todo mundo dizia. Mas ela tinha caixas de todas as cores, modelos e formatos. Sabia de cor, e isso era o mais impressionante, qual era o modelo, a cor e o dono dos sapatos ou dos tênis, sandálias, chinelos..enfim, se fosse uma caixa de coisas de colocar no pé, Isabela tinha. Seu maior prazer era chegar em casa no fim da tarde, após um dia estressante de trabalho e catalogar com carinho todas as suas caixas de sapato. E que alegria era chegar em casa com uma nova aquisição!
Os vizinhos à chamavam de louca, os catadores de papelão a odiavam, mas e daí? Isabela adorava caixas de sapato. Alguns amigos, os poucos que tinha, lhe davam caixas de presente, eram caixas embrulhadas que continham caixas de sapato. Ela ria e se divertia bastante com o agrado. Sempre indagavam porque ela não comprava os benditos sapatos, e ela paciente respondia “ eu já tenho um”.
Todos os dias, lá pelas cinco da tarde, Isabela saia do trabalho e olhava na parte de trás das lojas, procurando como numa vitrine, os seus adoráveis souvenires. Colocava-os na bolsa e partia feliz pra casa. Mas ela nunca, nunca mesmo passava pela frente das lojas. Quando perguntavam porque, ela simplesmente respondia “ As caixas ficam na parte de trás, eu gosto de caixas, porque olhar a vitrine se elas não estão lá?” incrivelmente as pessoas encontravam nisso um argumento lógico.
Mas um dos seus colegas de trabalho não se convenceu com a resposta, contra-argumentando que na vitrine havia caixas muito mais bonitas e novas. Isabela nem deu trela.
O tempo foi passando, a casa de Isabela estava cada vez mais apinhada de caixas de todas as cores e modelos e números. Ela comprava estantes, instalava prateleiras para melhor acomodar seus mimos. Quem a visse pela janela da casa, acharia bastante irreal a cena de uma mulher pequena, de vestido vermelho, sentada num sofá esverdeado com decoração noveau jantando com o prato na mão (a mesa também estava cheia de caixas de sapato) no meio do que parecia um estoque de loja de calçados.
Era sei aniversário, mais um entre tantos que ela já não lembrava mais, sua noção de números variava entre o 32 e o 41. Entre as diferenças de sola. E por ai vai. Nesse dia seus colegas de trabalho resolveram lhe fazer uma surpresa, que mais tinha ares de ensaio cientifico do que de surpresa propriamente dita. Lá estava ela, Isabela, como seu sapato rotineiro, feliz da vida com a surpresa, já imaginava uma daquelas caixas chiques, pretas com ornamentos. Andava temerosa, seus colegas a guiavam. Esquerda, direita, frente, olha a escada, quente, quente, ihhh, friooo, quente. Esquerda, direita, está quase lá. Seus passinhos delicados soavam. O sapatinho gasto via o chão por frestas de ar em seu solado. Sempre próximo.
Para. Para. Bem ai. Bem ai.
E ela parou. Abra os olhos, tire a venda. E ela tirou.
Ela estava bem em frente a uma imensa e maravilhosa loja de sapatos, de vitrine vistosa, com sapatos que brilhavam com todas as cores. Ela parou. Seus olhos se encheram de lágrimas. Ela quis correr. Ela quis correr, ela até tentou, mas suas pernas ficaram petrificadas. Ninguém nunca viu tanta emoção por causa de uma loja de sapatos. Respirou. Abriu os olhos e contemplou as caixas. Esqueceu das pessoas e viu as caixas. Entrou na loja e pediu uma caixa. Nada mais que isso uma caixa. Seus colegas não entenderam e ela nem deu tempo para explicações. Pegou a caixa e saiu correndo. Entrou em casa, trancou-se jogou a caixa por sobre as outras. E ficou olhando para aquelas enormes pilhas.
Ela não tinha dinheiro para comprar sapatos. Queria se convencer que era isso. Que precisava poupar dinheiro. Que era essa a razão de tudo. Queria desabar, mas não chorou. Olhou para suas caixas tristes e vazias. Ela não tinha pés. O que havia dentro dos sapatinhos surrados era uma deformação que ela não queria ver.
A grande verdade é que ela tinha vergonha de mostrar o que estava dentro dos sapatinhos. Respirou pesadamente,desatou o nó de fita dos seus cabelos. retirou com cuidado os sapatinhos surrados. Ficou olhando para seus pés, ou seus quase pés e balançou-os. Levantou e procurou uma caixa vermelha com detalhes brancos. Fechou os olhos. Estendeu um braço, debruçou-se sobre o aparelho de som e ficou ali ouvindo música. Abriu os braços.
Na rua um homem de sobretudo passava, seu rosto era triste e ele tenha uma caixa nas mãos, dentro dela um miadinho feliz saia. Ele ia pra casa. Olhou casualmente para a janela. Ficou perplexo ao ver uma moça dançando ali com caixas. Com os pés metido numa caixa de sapatos muito pequena. Nem pés de criança caberiam ali, pensou ele. Coçou a cabeça e ficou olhando. Cada um com sua loucura. Tirou o gato da caixa e deixou-a na entrada da casa. Colocou o gato no bolso do sobretudo, olhou mais uma vez e foi embora.
Ali em casa ela poderia experimentar suas caixas e imaginar todos os sapatos do mundo. Poderia ter a todos sem ter nenhum.

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