sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

De quando a solidão leva o cachorro pra passear
( ou como a morte nunca combina cores quando sai de casa)

Chove
Os pingos em rajadas atacam as estruturas citadinas. Seus corpos líquidos se esmagam com violência sobe todo e qualquer objeto ou sombra. Tenho febre e a cabeça arde num sono pesado, por mais que o corpo esteja por inteiro presente dentro das roupas, piscando, suando,por dentro ele dorme. Cada sílaba sonhada precisa de um corpo e eu não sei como fazer isso. É pouco o espaço pra tanto corpo que se avoluma dentro dos meus pensamentos. A casa vazia não me dá um consolo, tudo está estritamente quieto, nada além dos gritos pulmonares que lanço no vácuo ocasionalmente.
E ele queria a profundidade do mar Egeu num copo d’água.
E as frases desconexas se entreolham num momento de espasmo.
E os pulmões lançam rajadas de germes no ar empoeirado da tarde ainda que esta esteja tão ou mais doente que os próprios germes. Um dia atrás do outro, numa comitiva cinza de silêncios e vácuos ainda não compensados.
Eu preciso de alguém pra preencher nem que seja momentaneamente o meu espaço. Assim me desligar de mim por um tempo. Mesmo que seja um dia. Um dia na eternidade da existência já a compensa.
E ele queria a confirmação das anotações de cristo por um teste de caligrafia.
Ele estava no alto do prédio e corria como se suas pernas fossem arrebentar naquele instante. Seus braços perpendiculares a seu corpo em disparada faziam movimentos de máquina. As estruturas metálicas passavam aliviadas deixando nele o cheiro velho do ferro. A borda do prédio já pedia socorro. Socou o pé sobre ela dando impulso as asas que não tinha. Num instante seu corpo estava içado ao alto.
Chove
Cada gota cospe em seu corpo a desintegração de sua existência mínima e ininterrupta. Seus braços no espaço vazio das paredes de atmosfera tentam arranhar rebocos, mas nuvens não podem ser arranhadas. Apenas vistas. Seu corpo cai. Sua camisa xadrez movimenta-se canhota. Visto de baixo é uma pipa com uma rabiola estranha. Suas pernas se agitam, como se quisesse andar, mas não a chão. Ainda não. Pode ver os andares descendo um a um na sua retina. Elevador invertido de serviço. As janelas, vê seu próprio reflexo em uma delas por um décimo de segundo, pouco tempo pra guardar na lembrança. Toda a sua vida passa e não foi muita. Apenas dois ou três momentos que se lembra ocasionalmente. A manhã e o sabor quente e suave do café, o pão sendo esmigalhado por suas mandíbulas tortas e a carta que havia escrito para um de seus queridos pronomes.
E ele queria provar a existência de Deus usando uma colher de heroína
E ele queria mostrar a existência dos anjos rangendo os dentes pra Lua
E ele queria rasgar os jornais de Domingo com a ponta das pálpebras
Todas as loucuras imaginadas, suas metáforas e códigos pessoais pareciam pequenos e discretos agora a tantos palmos do chão. A calçada de linha cinza infame tornava-se largo oceano de asfalto e já podia sentir os vapores do carbono evaporados subindo aos céus transpassando seu corpo.
Os pulmões meus ardem numa tosse interna. A febre parece mais calma, porém ainda incômoda. As horas passam e eu nem me dei conta. As panelas ainda estão sobre o fogão, mas este não foi aceso. Atendi o telefone e vi a chuva no vitrô antes de me dar conta dessa concretude.
E ele queria deixar todas as marcas que podia pelo mundo
E as frases desconexas se juntavam num abraço
E num abraço macio de queda juntava-se o corpo ao oceano de cinzas variantes, suas vagas o engoliam vértebra a vértebra, osso a desgosto, até se tornar um grão de areia pequeno e ardente no meio da vaga cristalina de passantes e guarda-chuvas, pequenas estrelas do mar multicoloridas.
Chove
E a rua lavada escoa aqueles pensamentos e sussurros que ninguém ouviu, Cidade dos Anjos seria reprise, mas ele não se levantou do oceano, não foi cuspido de volta ao asfalto de passos. Continuo dormindo, letra a letra. O corpo estava lá, mas por dentro um sono quieto e quente o dominava. As gotas de chuva se desintegravam alheias ao sono em seu rosto pétreo.
Enquanto colocava novamente as panelas no fogo, embora não as tivesse tirado, coloquei-as novamente para ter certeza que não esqueci nenhuma, uma estrela cadente passou pela minha janela e sorriu. E eu nem mesmo sabia que estrelas possuíam bocas, mas se a Lua pode sorrir, com riso de mulher, porque diabos uma estrela também não o faria. Ela passou de pontas eriçadas e sumiu do meu andar e deitou-se no negro do asfalto. Adormecida.
Ainda
Chove
E as frases desconexas escoam com a chuva pelos ralos, deságuam nos dutos de esgoto e bóiam com outras quinquilharias da memória cheia de resíduos e poetas atrevidos.
Agora o céu parece ter parado seu movimento gástrico e cessou o vômito sobre a cidade. Parece calmo, embora tudo ainda esteja tingido de cinza, não mais gotas. Os prédios absorvem em sua cor as manchas de chuva, tornando-se por algumas horas mais vivos, mais intensos, menos prédios. Os fios molhados de telefone, de energia, os gatos de telefone, TV a cabo e outros fios pendem lacrimejados. Até os pássaros pendem lacrimejados. O alvoroço cessou. E aquela estrela ainda sorri na minha janela.
Acendo o fogo e deixo o ventre das panelas se aquecer, depois da chuva até mesmo elas merecem um certo consolo.
A casa vazia ecoa cada suspiro, cada crepitar do gás, passo sem chinelo ou assovio na rua decrépita. Depois da chuva todas as coisas parecem cansadas e dormem, dentro de seus corpos reside o sono do primeiro dia do ano.

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