sábado, 12 de dezembro de 2009

Luzes de natal numa rua sem energia elétrica

E já se foi. Aquilo que martelava e parecia lindo já se foi. Como a beleza outrora sentida nessas luzes de natal. Poderia parar e sorver uma garrafa inteira de vinho observando e tentando entender o movimento das luzes de natal numa janela qualquer. E já não seria sem tempo se eu tropeçasse inteiro num obstáculo mínimo como uma frincha no chão. Apelando para o bom senso que não tenho, evito as garrafas e evito as frinchas, exceto aquelas é claro que se alargam dentro de mim. Essas nem por descuido, antes retoco e amamento-as todas as manhãs com certezas frescas da minha condição de sonhador ridículo. Não que role para mim a aura dos personagens dostoieviskianos, mas pareço-me e muito com certos instantes. A noite chegada na porta sem ninguém, vagando por onde nem as sombras das luzes de natal parco rondam. Porque só a minha rua tem luzes diferentes? São azuis vermelhas e verdes, quando todo o resto é branca e resplandecente, na distância quase um sorriso infinito de braços dados, boca a boca costurado. Mas na minha, na minha rua a luz é diferente, lembra luz de puteiro. De bar de esquina, é menor a lâmpada e mais rala. As casas e prédios vazios me dão aquela sensação de bairros do Harley nas madrugadas de filmes policiais. Onde tudo acontece na luz tardia da madrugada. Chego. Ninguém me atende. Nem me persegue. Apenas a cabeça rodando num redemoinho e algumas vozes longínquas parecem tecer fios de palavras que não consigo inventar. Tiro os sapatos, os dedos quase em carne viva, eles são apertados de mais para mim, eu já sabia disso no ato da compra, mas eram os únicos pretos daquele modelo e naquele preço. E eu não tinha mais do que aquele preço no bolso. Fatalmente nunca tenho a mais no meu bolso. Sempre os dois e cinqüenta e cinco do metrô. Sempre os dois e trinta do ônibus. Os dois e cinqüenta de uma hora na lan house do Marcelo. Sempre as quantias exatas ou nada. ou sempre nada. fatalmente isso. E agora é o nada que põe band aids ocres na ferida do dedo mindinho, que bem parecia uma aberração por causa do sapato apertado demais para o meu pé mas que mesmo assim eu comprei no final do ano passado. Esse mês ele faz um ano. Um ano que me machuca. Eu o chamo de sapato de chuva. E hoje chovia. E eu o coloquei porque é o único que ainda não tem buracos na sola, justamente por eu usá-lo pouco. Ou algo do gênero. Eu preciso de algo liquido. Um copo cambaleante sobe comigo as escadas. E nas minhas roupas rotas você vê a marca clara das minhas desilusões, inclusive as de consumo. Especialmente no final do ano quando as lojas ficam abarrotadas e eu fico abarrotado de sorrisos esguios e bolsões de ar nas calças, mas precisamente nos bolsos das calças. É natal. E nada que me lembre isso está ao meu lado. Apenas um pisca -pisca que toca músicas repetidamente, mas tão fraco, tão velho que me soa quase melancólico. Quase como uma natal de infância que fica nublado diante de um pinheiro e um saco de presentes que você nunca lembra. E você nunca lembra, mas eu lembrei de você. Assim sem propósito. E a minha cabeça roda a casa na busca de um AS. As minhas roupas velhas demais conversam com a parede e os meus pés de mendigo sobem as escadas nus. Fico na beira da janela olhando o nada. A noite vazia de sexta. Porque é sexta e nada nem ninguém “vai me trombar hoje”. O telefone permanece no gancho. E a rua vazia me dá um murro. Lá longe um ou dois ou três carros passeiam entre ruas esquálidas indo para algum lugar além do centro. Porque eu moro no centro. E agora a minha rua é vazia. E as mulheres na calçada ainda conversam distantes e eu não consigo pintar uma conversa pra elas. Meus pés doem demais, eu andei torto da estação até aqui. Porque eu vim de trem. E o meu pé me matou mesmo quando eu estava sentado lendo um livro. Numa dessas raras oportunidades que a cabeça não pensa em nada além daquelas palavras que o livro circula na nossa testa. E a minha boca continuo seca embora eu tivesse tomado uma cerveja vagabunda. E a minha rua tinha luzinhas de puteiros. Mas na minha rua não morava ninguém em especial nem eu. Só eu. Ah, deu pra entender, que nada disso é ordenadamente importante. Meus pés doem mesmo com band aid,deveria existir um band aid que tapasse a dor. E existe uma dor em mim que não se tampa. Não se fecha assim como feridas em dedos estraçalhados. É algo vazio que me acomete principalmente nas noites de sexta quando tudo é vazio, mas em outro lugar tudo está cheio. Só meu saco está cheio. E o meu copo que eu esvazio num gole só. Mas é água. Não tinha dinheiro pro vinho. Quatro reais e setenta e nove centavos. E eu não tinha o dinheiro do vinho. Eu tinha apenas cinco reais e dez centavos. O dinheiro exato de ida e volta. Mais nada. E ah, chovia e o meu guarda chuva estava quebrado. Mas quem liga? Era só garoa. E amor, era uma garoa gelada. Mas tudo isso se foi. Na verdade eu nem sei porque coloquei o seu distintivo aqui na minha boca, até você se foi, sentimento passageiro. Apenas a solidão dos meus dedos dormentes e minha língua disléxica que tenta ficar bêbada com água, por falta de quatro reais e setenta e nove centavos. Mas a luz da minha rua é de puteiro. É natal e não há ninguém em casa, nem mesmo, a solidão que nessa hora me falta, numa insatisfação indiferente pela minha vista vazia, digo a vista da janela, na noite que nada abriga.
Um ato de coragem

Chegou em casa e o encontrou suado. A gola da camisa aberta. Um sorriso besta no rosto. Sentado a beira da mesa. Contemplativo não a percebeu entrar. Ela assustada, tocou com a ponta dos dedos o ombro do marido que instantaneamente saiu do transe e a olhava com olhos quase febris.

- hoje eu tive um ato de coragem, um ato que você vai acreditar.
Disse por fim.

Ela puxou uma cadeira e sentou-se ao seu lado. Postou sobre a mesa a bolsa e olhava pra ele, dentro dos olhos, de maneira quase apaixonada. Havia uma curiosidade já revestida de grandeza no modo como ela o olhava.

- cheguei em casa. Ela estava ali. Horrenda. Me olhando nos olhos. Parei o carro na parte externa de nossa garagem. Ela continuo impassível. Senti o suor me escorrer frio. Apertei com força o volante. Sentia as pernas trêmulas até. Mas munido de toda a coragem que dispunha ( veja bem você não havia chegado ainda e eu não poderia ficar ali na beira da rua) desci do carro. Apanhei a vassoura de cabo preto. Ali bem ao lado do interruptor. Sem pensar muito e nem medir força acertei-a em cheio, creio que foi na cabeça...

A mulher horrorizada levou a mão a boca. O que seu marido acabará de contar era verdade? Seria possível? Ele...ele nunca seria capaz de fazer isso...

Ele, percebendo a incredulidade nos olhos, mesmo em última fila na retina, ergueu-se energético e aos brados disse:

- sim, é verdade! Eu dei com tanta força que ele fatalmente voou pro outro lado da rua. Você entende que eu movi todas as minhas forças pra isso??? Num ato único de coragem nesse fim de noite!

E pegando-a pelos ombros.

- eu matei aquela maldita barata! Aquela filha da puta voou pro outro lado da rua! É verdade! Diga, foi ou não foi um ato de coragem, hein amor?

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Na casa de chá vendo o rosto do céu se desesperar a uma distância controlável

Quase que por um segundo as coisas saíram do meu controle. Quase que a sombra vestiu minha jaqueta e saiu para cantar que a morte saiu de férias. Que grande bobagem. Ela trabalha todos os dias e nunca folga. Carrega nos ombros as parcas almas fragilizadas por remédios, resíduos morais, ancestralidades animais, por acasos, por desgastes. Quase que choro. O olho chegou a coçar. Mas é natural que uma hora a carne se desfaça em cinzas e estas em meras lembranças de um domingo chuvoso. Mas não julgue insensível. De que adiantaria uma pilha de palavras sofridas ou narizes assoados para um coração que já se encontra em semi pedaços? De que ajudaria a alma um punhado de “sinto muito” quando na verdade nada sente? Fingir usurpar a dor alheia pra se travestir dela e por assim dizem compreende-la e dizimá-la e nada menos que um insulto. O silêncio do abraço e do telefone ligado a noite toda são mais que suficientes para confortar. E quem quiser ser dócil que doe um abraço, mas não uma lágrima parida a força. Se não sentir, simplesmente não imite. Quase por um segundo eu abri a janela e fiquei vendo a chuva cair, mas ela não caiu, se recusou, apenas debilitou o azul do céu num cinza débil. Até mesmo o tempo tem como encobrir as suas tristezas.
A terceira noite
(Para Dias)

Sem aviso. Ali entre as formas mortas de um pescado. Entre as formas opacas de um siri. O corpo forte exaurido sem aviso prévio. Alguma coisa o carcomia por dentro. E dentro da noite intensa alguma coisa se fez silenciada. E nada menos que três mulheres entraram em choque, em colisão direta com as marés que quebravam naquela areia agora fria. Naquele pálido pedaço de lua que se desfazia. Num ruído baixo e desmedido, quase inaudível, fez se uma certeza corrompida. Se houvesse tempo...se houvesse tempo... Mas nunca havia. Ela buscava sem maiores expectativas. Sem maiores apreensões. Colhia com a delicadeza e o humor de Bergman. Com o mesmo carinho que retiraria do galho uma flor para a amada, mas antes todas as flores mortas estavam antes dos dedos que as retirava. Antes já pressentiam a bicada desdenhosa? Não. Apenas permaneceram o tempo que lhes restava de beleza entre os dedos. E ele assim recebeu nos seus minutos comuns. Rotineiro. Até o momento em que ela deu um passo e lhe puxou o braço. Suave. Com um desconhecido que esbarra e leva com delicadeza a carteira, as moedas e o RG.

E no final das contas as noites passam cheias de corpos carregados. Levando pra longe em seus braços num aeroplano todas as inconstâncias. E afinal de contas o que é estar vivo senão um mero acaso? Uma fatalidade remediável a qualquer instante?
A segunda noite
(para J.)

Acendeu as velas num silêncio amargo. Dentro de si a certeza de que a ficha não caiu. Olhou para os lados tudo estava escuro. A noite avançava com fios de suspiro entre as estrelas. Não era nada poético o que ela sentia. Não era nada poético o cheiro das flores. Das velas. Do sal. Da noite que se empedrava nas retinas agora opacas daquela senhora. Nem era gentil sua face congelada. Nem era gentil o movimento alquebrado das mãos em busca de um retorno. Não era a primeira nem seria a última. Mas a dor às vezes é algo que sobe a garganta e não quer mais descer, como um bolor que fica interditando a respiração e você realmente acha que vai morrer naquele insípido instante. Acendeu as velas e corou a pele clara da palma das mãos na busca de uma dor menos lancinante do que aquela de olhar para um pedaço de amor sem vida e agora frio. De alguém que havia carregado tantos de seus sonhos nos braços e algumas de suas desilusões no silêncio do abraço. Acendeu as velas mas não teve coragem de ver. Ao redor tudo ruía. Nas paredes internas do peito os pedaços de reboco se exauriam. Naquela noite, - a mais longa daquele final de ano -, as velas pareciam menos reais do que o rosto contorcido de seu pai, que qual cenário expressionista se desfazia em ângulos avessos a natureza. A tristeza da morte ensaiava sua entrada.
Três noites em claro
(para J, Dias e Mário)

A primeira noite
(Para Mário)

Um homem com uma arma se acredita um deus. Um homem com uma arma honra mais o metal que a pele entre as pernas. Que merda de homem é esse? Que invade as casas em busca de dinheiro atravancando com “coragem” corações alheios. Abrindo buracos na carne dos móveis e dos imóveis corpos suspensos no tempo imediato do susto. Como uma matilha de animais fedorentos invade os ocos dos palcos e dispara ríspido sobre veias errantes. Que homens são esses que vivem na época selvagem da caça sem foco? Que homens são esses que correm com pedras nos bolsos. O homem quando portado de armaduras e disfarces se concretiza, se imagina dotado de garras, de águias, de machados decepadores de crânios, de asas nas pontas dos dedos.

Os homens são animais tristes disfarçados de gravatas, de peles caras, de jeans e camiseta. No meio da noite uivam e salivam e babam na força interior dos seus desejos assassinos, suicidas. São cruéis com as próprias intenções. São mordazes e despelam o céu com facas em punho. São bocas que gritam palavras de ordem enquanto esbofeteiam mulheres. Os piores entre os homens são os insondáveis heróis arruinados, que se crêem distintos de toda a humanidade, por terem comprado sua coragem numa loja ou terem permutado-a por uma pedra.

O cheiro acre da morte invadiu uma dúzia de casas e dizimou sem adeus uma meia dúzia de abraços. De beiços caídos na descrença do fato. Esta noite há velas acesas nas janelas. Enquanto oram por redenção, enquanto oram por força de suportar o triste fim de um caminho pesado. Morrer não é o problema e nunca foi. Estar a espreita da morte e saber o dia da sua visita sim. A maioria das pessoas não suporta a idéia do acaso. De morrer numa cama. Num pijama. Numa rua sem aviso. Mas estar vivo é um mero acaso, uma coincidência das mais felizes que se desfaz como um nó de presente de aniversário.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Da não intimidade

Vago.
É vago esse lugar.
É triste essa sensação de não pertencer.
É silenciosa essa vontade de morder um pedaço do céu.
É imenso esse desejo seco.
Essa vontade carente de me deixar esquecer
De me desprender
De todas as coisas que não sejam minhas.
Vago.
É sempre muito vago ao meu lado.
Desse lado da rua em que nada reside.
Esse silêncio que progride a medida que os anos caem
Como pedaços de reboco no chão fosco.
A medida que o tempo se esvaí
E qualquer medida parece ridícula.
O argumento de Jonas para uma conversa bêbada sobre romances

Se disserem que amor é uma coisa qualquer, um substantivo masculino, uma tralha indefinida, uma predisposição química, genital, temporal, temporária, um fenômeno urbano, um caos poético, uma abstração do corpo eu até acredito. Mas se houver uma conversa desfiada de bar com uma definição mais pessoal, cheia de nomenclaturas parcas e sentimentos aflorados eu vou achar uma merda de conversa. Lá de onde eu venho, do outro lado da rua, não tem essa de amor bonitinho, que completa, que afrouxa, que amarga, que faz. Pra lá é coisa abstrata que a gente sente e pronto e não fica se explicando aos montes. Não pergunta endereço, se tem compromisso, casa,telefone, se é por tempo indeterminado ou uma noite. É coisa que irrompe da veia pra carne, da carne pra rua e da rua pro abdômen numa dor dilacerante e cheia de riso. É sensação tinhosa de dor com acompanhante, suco de abacate seguido de champanhe. Não precisa caminhar na rua de mãos dadas pra sentir, não precisa preencher formulário e uma série de convenções sociais pra mostrar que existe. Na verdade nem mostrar que existe. É coisa minha. É coisa nossa. Atitude oposta ao por do sol. Do outro lado da rua se você não tiver olho clinico vai até acreditar num certo romantismo, mas se ouvir atentamente os miados sobre os telhados, vai saber que é algo muito mais visceral e não apagado. Não precisa ter nome em contrato, nem aliança de compromisso frágil. Pra existir só precisa de altitude e espaço. E as vezes nem isso, por que floresce em cada buraco, que convenhamos, nem moscas se aventurariam. É de dar nó na cabeça. E por isso ninguém entende o silêncio daquele lado da minha casa, que o jeito de gostar naquelas paradas ali é meio inquietante. É meio tenebroso. É coisa que quando expande calcina até o osso. E quando resolve amargar transforma corpo em terra de ninguém. No momento o meu é um terreno baldio bem longe da cidade. Não bate,não apanha e nem quer saber de samba. O meu tá ali quieto, no fermento que alimenta os resquícios. Tá vivendo de esquecimento, e se ralando pra ser esquecido. A coisa quando existe é foda. Não quer saber de deixar o palco em silêncio. Mas me desculpe meu amigo se me estendi no argumento. Eu só não acredito nessa conversa mole de paraíso terreno.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ela


Ela tinha algo que movia. Algo que fazia o mundo girar dentro do baixo mundo. Tinha algo que seduzia. A droga perfeita segundo Trent Reznor. Algo no seu silêncio cheio de pequenos pontos aderentes. Algo na sua sensualidade latente que fazia do rastejo quase um regozijo. Ela tinha o dominio do veneno, da boca. Das ruas, dos pontos de venda, ela sabia que quando o vício chegava no auge, todo o resto de desfiava em edemas. Ela era mortal a medida que sussurrava.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Se

Se houver um minuto de silêncio no meio da chuva e dos trovões você saberia dizer o que a boca de alguém saliva? Quais palavras estariam intensas? O que seria um grito? O que seria um choro ou apenas chuva? Se houvesse um gemido no meio da multidão saberia o indício de prazer ou sofrimento? O que seria desse momento? Eu ainda nao enxergo por trás das intenções, eu não tenho mais que duas mãos para segurar um corpo frágil que se despedaça num sopro. Eu não tenho tempo para compor todos os poemas, os dilemas e histórias que gostaria. Se houvesse um dia de chuva a mais dentro da minha cabeça, seria como uma inchente levando gavetas vazias, pedidos solenes e sensações de distância. Porque quando eu vejo um bom dia longinquo eu sei que a conversa não vai durar.

sábado, 21 de novembro de 2009

Duas coisas a mais no mundo

Deitou a cabeça num horror. Ainda havia algo de patético naquela espera. Naquele algo mais que a vida não entrega de mão beijada. E tudo no fim parecia um livro ordinário de auto ajuda. Abriu uma garrafa d'agua e ficou ali na beira da sua cama no seu micro apartamento. A chuva caia imperiosa e ele ainda aguardava seus salvadores quinze minutos de sucesso. Mas a onda de histórias equivocadas se aglomeravam na palma da sua mesa. E na quina das suas cadeiras ficavam os jornais e as revistas onde ele incessantemente procurava a referência do seu nome.

sábado, 14 de novembro de 2009

Crônicas de uma mente vazia Vol.4

Cansei de comer putas, arrombar corações e ter o meu estilhaçado a cada perda. A cada concerto grosso de gemidos ocos a boca fica anêmica e uma ferida imensa surge no que seriam minhas palmas. Tocar apenas a superfície vítrea dos seres. Ter apenas um prazer doentio em retirar as certezas em gotas de suor. Apenas o mais baixo da alma. A menor unidade de tempo nos braços de alguém. A ferida mais fácil de cicatrizar que em mim fica coçando e sangrando por dias. Cansei de esticar noites em bares asquerosos com copos preenchidos de vazio. De conversas rasteiras que não me detém. Cansei de esparramar palavras doces e súplicas por uma aprovação da minha existência. Um RG maldito gritando minhas qualificações como ser humano. Cansei de dar murros em ponta de faca e passar o dia com a mão retalhada. De ter percepção dos rodeios, das mentiras e das pequenas ações esquivas, do pânico que meu gênio causa. Já estourei o saco pensando em como mudar o mundo, mas hoje nesse dia cinza, a minha criatividade mórbida tornou-se moribunda e aquela revolta que sempre me sobe aos lábios viu uma chance de ver o céu. A goela fica ardida e um sono povoado de imagens doentias quase lisérgicas recobra calor as minhas gengivas. Cansei de certa forma dessa vida cheia de crônicas vazias sobre pessoas estranhas e suas deduções.

Abro a geladeira na busca de uma cerveja, alguns vícios são difíceis de rejeitar na solidão da casa, o degelo não me traz os mesmos pensamentos de Eisenstein, apenas uma umidade que acaba em poças largas, ou que pelos formará poças largas pela manhã. Deixo o liquido gelado lamber minhas caries e me provocar dores finas e sedentas. Jogo o copo ao fim contra a parede pelo simples prazer de depredar meu universo fantasioso.
Crônicas de uma mente vazia Vol.3

A boca soltou chispas. Na direção errada. Soltou mágoas em silêncio por SMS oculta. Ficou ainda vendo se o celular seria atendido se uma resposta seria escrita. Que nada. Moveu-se lenta de volta ao afazer daquele instante. Nenhuma ruga, vinco, passo, tremor, não sei se ela chegaria até o final do dia sem saber. É...chegaria. Chegou. Abriu a porta de casa e desceu uma escada lisa em direção ao chuveiro, como um prédio lavado deixou escorrer todas as perturbações. Do outro lado da cidade alguém se acomodava em um sofá azul demais para uma sala clássica e básica. Alguém que pensou fazer a maior merda de sua vida. E não, não era se matar. Era se meter num ridículo caso de amor, ou melhor de desejo de uma parte só. Maior roubada nem na tela do cinema. Mas pensou. Por dois minutos pensou. Escreveu dentro de sua cabeça todo um plano sensual que logo viu ser uma merda. Os dedos então soltaram qualquer forma de conexão com o mundo exterior. Ficou imerso numa solidão digna de catacumba. Não havia quem o procurasse. O silêncio das suas relações era quase tangível se não fosse a sua insistência em gritar “estou vivo porra!”. Se não fosse isso, o dariam por cadáver pútrido e já devidamente expurgado do corpo de algum animal selvagem. Mas ele morava na cidade, no coração cinza da cidade e o único animal que poderia devorá-lo era um mosquito ou num caso raro de animal perdido do zoológico. Como aquelas antas que aparecem na beira do Tietê. O que pode ser considerado bastante selvagem para um lugar em que mal habitam as flores. Mas enfim, saltou dentro de si alguma coisa que era muito parecida com um gemido, não prazeroso, não assustador, não choramingado, uma cólera. Um copo de cólera que se quebrou dentro da sua boca faminta. Queria mesmo era atear fogo a todas as suas paixões (físicas, mentais, manuais) e vê-las na pureza cinza de um granulado. Queria se purificar. Mas isso soa tão católico e tão culpado. Como se houvesse um pecado, o oitavo pecado capital: a idiotice. Se houvesse esse pecado e se houvesse o inferno, não restaria alma e o inferno teria problemas com CDHU, taxa de desemprego e taxa de natalidade. Mas era mais ou menos isso que queria. Queria se soltar. Estava triplamente cansado de ver o fim do mundo a cada cinco minutos por causa dessa ou daquela pessoa. Era exagerado, sabia bem disso. Era afobado, sabia bem disso. Sabia bem de várias coisas. Mas isso não adiantava muita coisa. A boca soltou frias chapas de palavras. Paredões de incentivo ao niilismo. Na direção errada. Na versão avessa do tempo ficou sonhando com coisas e pessoas que estavam muito longe de existir.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Crônicas de uma mente vazia Vol. 2

Que diferença faz se não há uma história para contar? Se não há um roteiro e cenas bem dispostas, há apenas fragmentos flutuantes num oceano de aparências. Que diferença faz se você não fecha a porta? Se eu não pulo da janela? Essa palavra ou aquela? A tarde está escaldante e ainda não há nada que preencha de vontade o copo a minha frente. Este último copo trazia tantas expectativas. Trazia tanto desde a sua chegada, mas vejo-o vazio, sem nenhuma mistura que possa medicar. A tarde está quente e o terreno asfaltado parece se retorcer, a espinha da cidade procura refúgio, como dedos mornos numa parede fria. Afastar de si o calor e as expectativas. Que diferença faz se a semana exigiu algo que não recebeu? que diferença faz se o mundo se tornou mínimo e ninguém percebeu? Percevejos sobem nos crânios vazios e nos fêmures detonados pela poeira e pelo descaso, que no fim das contas somam o mesmo item. Rebuscado trabalho de palavras na tentativa de esconder o rosto do sol e da feiúra que naquele habita de forma tão intransigente. Pela sujeira que nele se aglutina formando novos vincos e saliências. Eu não respeito a nova gramática do português. Ainda uso acentos. Ainda preservo a beleza das palavras e luto contra a sua massificação. Guardo na geladeira um pedaço do meu coração, keep cool boy.
As horas pesam, passam incomensuravelmente lerdas, belas e prensadas. Como um dog. A cabeça minha fica entre o purê de batata (abusada de pensamentos ilícitos de amores vítreos de terrores vulcânicos de desejos insanos e de vodkas impuras) e a mostarda. Minha sensação de morte e dor de coluna não poderia ser mais crível. A novela não menos expansiva. Necrose nas pernas, não há para onde correr. Porque a luz do sol cospe sobre tudo sua potência e não há mais cantos escuros nem morcegos nem lentes de aumento. Não há mais cervejas nem desculpas nem sortes. Não há muita coisa que se possa explorar além das alvas folhas de papel que se traduzem em novas solidões. E por mais risonha que fique minha cara pregada numa foto anual quem me absorve cospe de volta o gosto amargo de um fruto acre, roxo morto. Me sinto estupidamente encarcerada. E sinto que ainda haveria beleza se não fosse o pessimismo, e a burrice crônica que toma conta das minhas partes, por descaso, por desuso. Um lado do meu cérebro faleceu de solidão a semana passada. E toda uma parte do meu coração foi esmagada na via Dutra entre fotogramas e largas passadas. Não há mais nenhum pássaro solto no céu. Não há mais nenhuma cor além do azul saarico. Da oferta a preços populares de uma dor que eu já me afeiçoei. Não dá pra entender como tudo isso aconteceu. Aquele copo me trazia tantas esperanças. Aquele copo tinha tudo pra dar certo. Pra ser cheio. Mas ficou trincando num canto que corta a boca e não dá pra remendar. Apensar de tão estar quebrado, ficará inutilizado numa vitrine esverdeada desse bar louco. Que diferença faz pra ele a frincha ou o racho? Acho que nenhuma sorte me convém nesses dias. E ainda assim me fecho mais num cubo duro e escuro de inquietações que futuramente você poderá ver num folheto qualquer ou numa esquina a tecer histórias que nunca foram solidas fora das linhas que o prensaram.
Crônicas de uma mente vazia. Vol. 1

Entre dizer e não dizer apenas o masoquismo do silêncio, das relações frustradas. Das inquietações e das parcerias e confianças exterminadas. Finda aqui no rosto sério o que há de realmente sério e humano. Conte tanto com meus dentes quando com as estrelas do mar. Finco os pés numa terra grossa e escura, preencho a boca com ela, provoco terremotos no silêncio e por vezes quero gorfar palavras, mas de que adiantaria? Apenas um amarfanhado a mais de seres distantes se distanciando mais no cair da noite. O medo da perda pelas escolhas. Ou medo das escolhas sem prever pessoas? A equação sentimental é confusa. Fica entre as respostas coladas no fim do livro e as livres deduções. Uma colagem que não se finda numa colcha de possibilidades inúmeras. E o sol arde. Entre queimar e acariciar ficou restrito na função de algoz de um e dominador de outros. Mas eu permaneço na corda bamba das palavras. Qual seria a boa razão pra me expressar? Só por dizer? Só pra ilustrar ou esclarecer? Que falta de senso. Tento me convencer que é inútil, mas muitas vezes minha língua é mais rápida que meu pensamento. É vejo uma série de teias se romper, arrombadas por insensíveis dedos e prematuras sensações. E teias são muito delicadas, não se reconstituem, nunca voltam a ser as mesmas.

Esse silêncio prematuro as vezes me dá náuseas. As vezes se torna um assassinato premeditado com requintes de crueldade e por vezes é um riso juvenil e estúpido.

E as vezes fica amargo, noutras perigoso, armando ciladas para mocinhas desavisadas, mas a única mocinha desavisada por aqui sou eu.

Entre dizer e não dizer fica todo um romantismo barato, feito de livros nunca lidos, trechos de peças teatrais perdidas na memória. Fica um pouco de tudo isso. O anonimato dos pensamentos realmente belos.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Apesar da dor que a chuva traz entre suas costelas

Apesar de toda a inconstância, todo o apego as marcas do passado ficam vermelhas e ardentes nas noites de frio. Que apesar do calor que o álcool traz o coração permanece frio, sem vontade de bater, preguiçoso esperando a hora de morrer. Que as letras caem dos lábios para os fossos dos dedos esperando o esquecimento como prêmio. Que apenas nesse momento, assim triste, carcomida fico viva. Que preciso da dor pra me mover, me arrastar entre escombros, que apesar disso me matar, necessito. Ainda assim odeio. Ainda assim transformo esse volume de tristeza em algo atrativo pro meu olfato, farejo mesmo a minha desgraça e a noite me adensa. A noite me detém sem sono. A noite me detém fria e pétrea.

A dor passou um pouco. Limpo uma gota de catarro na gola da camisa. Abro uma cerveja pra deixar o corpo mole. A noite entra na minha retina e me sinto invadida. Qualquer coisa é melhor do que ter memória. Do que ter um corpo e uma vontade. Qualquer coisa mesmo. Um pico. Uma estrada desgovernada. Um coma. Um engradado de cerveja quente. Qualquer coisa é melhor do que sacudir as gavetas. Até mesmo fingir que está tudo bem. Que apenas o uso abusivo de álcool me deixa melancólica e triste.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Lá pelas três da manhã

Na noite os densos se revelam. Os pensamentos emergem como figuras num desenho inconsciente. Na noite os desejos interferem no manejo das mãos. Os segredos imperam nas bocas ociosas. E oscilam entre o silêncio e a derrota da voz. Na noite os letreiros se acendem e toda a vida esburacada sai a rua pra se vender e se trocar por novas histórias. Na noite todas as bocas entristecidas ganham contornos vermelhos e as lágrimas preenchem copos e goelas. Na noite o sexo permeia as nuvens e finca pé nas janelas. Na noite os pescoços se espicham sem nervosismo. A música entra pelas janelas e ouvidos e até nos buracos menos resolvidos. Na noite a resolução é um momento e não uma meta. Na noite a alegria é um cometa com hora marcada e ponto de ônibus. Na noite todos os gatos são negros e usam All Star de cano alto sujo. Na noite os baixos eletrificados entram no ritmo dos corpos. E os dentes voam nas palavras alquebradas. Nas quebradas de esquina os sonhos envelhecem. E na sarjeta se regurgitam em novas promessas de segunda-feira. Na noite todo corpo se torna pretensioso. E todo timidez encontra sua capa de invisibilidade. Na noite todo sorriso esconde uma fama e uma cama desarrumada. Na noite meninas resistem tensas nos cantos da pista. Na noite as experiências tem cor de azul profundo e metálico. Na noite as paredes ganham hematomas e restos de suor. Na noite as escadarias ganham chuvas mornas de urina prateada. Na noite existem olhos que não diferem postes de calçadas. Na noite existem grandes encontros. Na noite resistem grandes dúvidas existenciais. Na noite os dedos se torcem nervosos entre anéis. Na noite existem copos que oscilam entre o não e o sim. Na noite existe o esquecimento. Na noite existe o desconhecido. O repetido. E até o incompreensível. Na noite espreita a morte. Na noite a lua dorme enquanto seu corpo vaga branco por um véu de pretensões. Na noite existe a ilusão da força. Existe a grossa pele da certeza que se desfaz no primeiro farol de carro. Na noite há o charme que só a luz do sol consegue desfazer. Na noite há a beleza que não se pode representar. Há o palco que sempre fica cheio. Na noite resiste o sonho que pela manhã não reconheço.
Quando brotaram estrelas no fundo do mar
(I’m a lonely boy in deep of the ocean)

Eu sou um garoto solitário no meio do oceano. Preciso matar. E preciso morrer. Preciso de todas as coisas extremas e intensas no meu sangue. Sou um garoto deteriorado no meio do oceano. E eu tenho uma vida básica. Eu me sinto como uma concha abandonada. Onde eu fui parar? E todo aquele romance? E toda aquela lascívia? Eu cresci e me esqueci acolchoado debaixo da cama.

Deitei no meio da areia funda e úmida e gritei até meus pulmões se encherem de água. Sonolenta água experimentando um pouco da minha veia, da minha goela da minha voz atravessada por peixes multicoloridos, algas, gemidos, fremidos gelados. Não consigo me afogar, por mais que tente, não consigo afundar. Por mais que tenha uma pedra no peito, não consigo encontrar abrigo ou paz no fundo desse oceano. Não consigo dormir sem me perder. As mãos sentem-se sozinhas. E mesmo quando o delírio tenta preencher uma lacuna qualquer e um murmúrio sobe aos lábios, é frio. É vago. É rápido. Como uma música perdida numa rádio. Petit Prince. Um avião sonolento dentro do peito, uma turbina que não funciona e lá se vão minhas emoções e eu perdi meu cartão telefônico. E uma turbina que não funciona e faz um ruído no meio da noite incomodando as marés e as estrelas e as tristezas. Ficou cristalizado dentro das cordas vocais. Além de qualquer expressão. Tudo que sai daqui é lixo. O que realmente presta dorme. Eu sou um garoto dormindo no meio do oceano, não sei se já disse, mas é bonito ver a lua daqui do fundo a noite. Ela ganha uma capa azul escuro. E fica diluída em linhas fluídas. Daqui do fundo ela fica assim, quem sabe hoje eu consiga dormir e não sinta tanto frio. A areia entre os dedos do meu pé. Quem sabe não seja tão óbvio. Quem sabe eu possa ver um corpo cair no mar. Quem sabe eu possa ver uma pedra fisgar a nádega de uma onda. Eu vi um pássaro fazer seu último rasante da noite.

Eu sou uma espécie de carícia esquecida no fundo de uma pedra. O bruto escondido dentro do coração. A malha de metal antes da forja, mas eu me jogo no fundo do oceano pra me esquecer de toda a forma e toda a folha e toda a fome que me percorrem quando meus alvéolos tocam a superfície. Mas... eu não consigo me afogar.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Duas doses de silêncio

Se alguma vez parei de respirar o momento pedia mais que o meu corpo podia aguentar, não exatamente o corpo, mas o que havia dentro dele, o recheio também conhecido como alma. A minha anda tão cheia. Tantos pensamentos, tantos romances, devaneios, escrotices e coisas amenas. Pequenas palavras doces para um tanto de outras acres ou repentinas. Sem paciência para as pequenas ilusões que me preenchiam, para as pessoas que enchiam meus copos sem parar, meus quase vinte e cinco copos. Eu tenho um terror a esse tédio. Esse tédio provindo de pessoas vazias, momentos esteréis, apenas sombras chinesas, apenas de bonitas, insípidas. De mesas de bar cheias de parasitas, cheias de oportunistas. Um pouco cansada desse marasmo boêmio que apesar de delicado não me inspira o amor, nem a paixão. E a paixão é razão da minha existência. É por ela que eu me levanto, que eu rabisco, penso, produzo me encanto. E nesses dias, amores requentados não me inspiram, só me perdem e me entediam. Aqueles poemas de outrora, agora parecem pedaços de reboco caindo pelas frestas das mãos.
Se alguém perguntar por mim diz que eu fui por aí

Vamos sair dessa casa. Dessa amarra. Dessa carranca. Desgrudar desse telefone. Fazer um poema enorme pelo MSN. Juntar pedaços de fotografias alheias e paus e pedaços de janelas e montar uma instalação na esquina do seu prédio. Escrever um roteiro para um filme sobre um sol que tinha músculos e preguiça de levantar de manhã e sobre uma garota que tinha um cabelo estranho demais. Talvez uma ficção cientifica com latas de lixo e caixas de papelão. Nos fundos da casa vestidos de robôs espaciais com sacolas de mercado na cabeça. E tudo isso no fundo é bom demais. A tolice as vezes é boa demais. Serve de válvula de escape para toda uma série de pretensões, fantasias que só se realizam dentro das gavetas da cabeça. Para um mar de sonhos que não se realizam. Seria talvez um último grito de solidão, se não fosse ela a dançar no meio da sala. Até que fazemos um belo par. Minha solidão e eu nem somos mais tão tristes. Uma hora a gente se acertou e as vezes a noite uma vez por semana imitamos o Bergman e vamos jogar xadrez pra decidir nosso destino. Tudo muito lúdico. Muito prático. Automático. Nem é mais tão ruim ver da janela uma série de janelinhas acesas numa noite qualquer quando apenas um desejo de fazer algo de inusitado banhava as têmporas minhas. Veio o silêncio pornográfico dos pensamentos silenciados. Depois a apatia por pequenas derrotas. E eis que nem é tão preocupante o que vai ser daqui pra frente. Eu perdi de novo pra minha solidão, mas ela como boa companheira soube dividir uma taça de vodka. Então vamos sair daqui hoje. E jogar todos os livros do Caio Fernando Abreu nas cabeceiras alheias. Espalhar um pouco desse momento por ai como uma música que se ouve em looping até seu frescor se acabar e outra tomar seu lugar.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Corpo presente
(Carlinhos, um fode corpos)

Deus. Deus. Deus. Eu estou tão perdido. Que até invoco seu nome na boca do meu estorvo. Estou tão rouco e tão farto que me deito com diabos. E nem lembro o nome das vitimas. Deus. Porra. Me de uma dedada no olho. Me desperte. Me faça pagar mais por uma noite de insônia. Seja grotesco comigo que de gentilezas já estou farto. Me dê uma reza obscena pra lembrar a crucificação. E eu fico de pau duro com a crucificação. Me dê! Me dê! A droga de uma saída para a minha pornografia diluída.

Eu suo. Abaixo das minhas pálpebras um ardor como se uma queimadura reinasse ali. E eu já não pudesse ver com certeza todos os músculos do sol. É dia. É dia? Uma luz que não me recordo invade meus poros e por apenas um instante me sinto puro. Me sinto até salvo. Mas uma batida na porta deixa meu corpo tenso. Apenas um corpo, mais um corpo na minha pilha. Incinero desejos como se fossem pedaços de papel gastos, rabiscados. Ouço suas histórias, comento seus sussurros. Invento amenidades para tapar buracos e sinto os carrascos saírem das gavetas em risos e choros convulsos. Sinto a pálpebra queimar e o cigarro na minha boca parece mais denso, mais pesado, concretado. A saliva seca. A pálpebra que arde. Uma porta que se fecha.

E eu me sinto tão farto. Tão rejeitado. Como sombras os corpos se afastam silenciosos. E pela janela posso ver o carro virando na avenida principal. Pra casa? Pro trabalho? A roda cansa em se afastar para um caminho conhecido. E eu ? Onde eu fico? Quem vai me deitar num sono sem sonhos? Quem vai me propor um desencontro com minha alma? Acendo mais um cigarro e deixo que o conhaque amanheça mais uma vez dentro de mim e me dou o direito de quinze minutos de felicidade. A arrumadeira da casa troca os lençóis e me deixa camisas limpas. Silenciosa como um puma ela se esgueira pelos espaços. Nos meus quinze minutos de folga eu queria ter merecido a cretinice de ter me tornado advogado. Uma batida na porta. Ajeito a gola da camisa e apago o cigarro. Olhos vazios para mais um sussurro.
Arco íris negro

Um arco de imaginações. Alguns falatórios pegos ao acaso. O motivo estampado nas caras. E uma solidão avulsa palpitando entre os ossos. Será que dá pra entender? E eu sei que não vou conceber o universo que será expulso da sua cabeça. Não porei cores nas suas falas. E nem mesmo sei se aquilo que imagino fazer é o certo. Dá vontade de desistir assim de imediato. Mas me venço pelo cansaço. Aparentar a fraqueza que por muito me habita jamais. Finquei pé num corpo úmido e deixei que se esfacelasse como folha seca e levada a morte na terra. Um arco de pequenas constatações. Quem sabe o umbigo não esteja no meio da terra. Mas quem sabe ele esteja... Difícil dizer onde termina o palco e a cena e onde se inicia a multidão invisível e muda de rostos petrificados, entediados por nada entenderem daquele último rodopio na pista. Na verdade os segredos morrem em códigos que só o solitário decifra.

“ Tem tanto tempo que te quero” parecia uma frase apropriada pra se dizer, mas mesmo que rabiscada, voltou-se o taco de bilhar ao silêncio e do silêncio para qualquer outra conversa trivial. Ficou assim o desejo empolado no fundo de um copo de catuaba.
Quando o autodidata dentro de mim se estressa

Rabiscos em papéis amassados. Rostos toscos desenhados em posições idênticas. As mesmas mãos estiradas num apelo que não se sabe qual. Pede-se o que? Pra quem? Por que? Por que raios se pede algo e não se toma logo de vez na violência de um instante extremamente humano? Porque já não estabelecer a lei da selvageria confusa e visceral das relações inexistentes. Faz um tempo que não vejo alguém que me inspire um poema. Algo além de um arfar sujo numa noite de garrafas obscenas. Algo a mais. Simplesmente a mais. Faz tempo que não lanço letras ao vento. E esse oco me convém. Como uma árvore esperando uma tempestade absurda que nunca vem eu me sento na porta de casa esperando um automóvel desgovernado pra me destruir. Me destituir desse catálogo de fracassos. E mesmo quando não quero tudo se torna por demais pessoal. Tudo segue. E eu também. Sigo cega numa auto estrada lotada de caminhões. Qual deles vai me abater? Além dessa tristeza que por vezes me toma pela mão e me faz dançar a valsa que eu nunca lembro. Além de um passo menos espontâneo. Menos prazeroso. Ao contrário dos almanaques de dança de salão, se torna intenso e frouxo o meu discernimento acerca da minha beleza. E tudo fica adunco. Curvo. Disforme. Desovado. Inteligível. Emaranhado de linhas num formato não coreografado. Caligrafia horrenda sobre um caderno que poderia ter sido um livro de artista. Poderia se não fosse o acaso. As escolhas. Ou qualquer outra desculpa mais prudente.
Quando eu já não sei

Nas dispersas brumas dos pensamentos ficou uma dúvida em relação a minha existência. Um questionamento sobre o final de toda aquela história. Aonde daria todo aquele desgaste e excesso de voz? Já não sei. Fico indo de um lado a outro, como bola de pinball, batendo cara, peito, braço e coxa nas laterais desse aquário gigante. Arrancando a pele dos lábios em sucessivos ataques de raiva pela impotência das minhas sensações e pela ineficiência das minhas ações. É frustrante desejar a perfeição e de repente perceber que o que se faz é muito pouco. Que por mais que as horas se acumulem nos relógios é extremamente pouco o que se dá de si. Que falta muito pra se consumir. Que ainda não dá pra sumir, deixar que toda a paixão arda e queime a carne a alma e tudo que a palma toca. Pra mim que sou apaixonada por tudo que sonho, é intenso é perigoso é quase doloroso o processo de me deitar todas as noites e tentar dormir. De saber que nada do que tenha feito serve de referência para um dia na vida de um inseto. Que todo a pluma, língua ferina e volúpia alucinada nada são comparados ao prático, a matéria. Daquilo que pode ser admirado. Que o que eu faço é ilusório. Que a minha sede não se sacia com largas escadarias monetárias. Que a minha vida é solitária. E é muito frio ao meu lado, mesmo que do meu peito e retina saltem labaredas sanguíneas. Como fazer entender? Como me entender? Se já na primeira hora do dia me vejo cercada de incompletudes, folhas de papel, diplomas e certificados para uma vida vazia? Que aquilo que querem de mim não existe, não vive, não respira. Tento me por dentro de uma esfera, mas sinto que lá fora, o mundo comum não passa de uma selva, de um zoológico de animais tristes. Por que para infelicidade geral o homem é um animal triste que vaga por ruas e calçadas em ternos e aparências insólitas. Que para infelicidade geral da minha razão nada do que eu faça é racional. Eu não existo. Mesmo com RG, CPF eu não existo. E tudo que eu toco voa para longe, se esmigalha ou simplesmente desiste de ser. A minha palma finca a mudança mas não sede a ela. E esses dias tem sido distendidos como músculos no auge da dor. Já não tenho tantas respostas ásperas pra deslizar boca a fora porque uma série de perguntas queimam minhas pestanas e me tiram a fome. E quando deito vem-me um sono doentio, empesteado de sons, vozes e silêncios constrangedores. Ranjo os dentes num frio que não suporta meu corpo, um medo de fazer de tudo um castelo de areia. De não ter conforto na aparência que me detém.
Dois copos distintos



Ficou admirado com o tanto de bobagem que pode existir dentro de uma boca. Com o tanto de indecisão. Aliás, ficou quieto o dia todo esperando que alguma coisa menos tediosa ocorresse do que as já recorrentes chuvas de verão fora do verão. Com os poemas lindos que poderiam sair de dedos tão afeiçoados a liberdade incondicional que fere. Com pessoas que nada tinham além de si mesmas como refúgios vazios para seus desejos. Ficou admirado com a pequena imensidão de uma palavra. Ficou lirico. Afiou um pouco mais a navalha que cortava sua sensação. E esperou que de algum modo o mundo se movesse e que os dois copos distintos que brilhavam a sua frente se findassem vazios. E que sua cabeça rodopia-se mesmo que no fundo não tivesse vontade de fazer nada que não pudesse ser solitário.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Alex e a interminável manhã

Deitou em sua cama ainda quente de uma noite sem sonhos. Deixou que a prosa enviasse recados. Mudos. Aos seus sentimentos ressentidos. Fluídos. Que nunca secavam na memória. Deitou na cama ainda úmida de seus retornos. Adornos. Para uma política social pouco palpável. E muito dolorida. Dentro de si a infecção sem sabor nem cheiro da adrenalina. Veias reposicionadas. Cabeça arqueada no travesseiro branco. Da janela apenas uma nesga de sol confuso, que nem chegava a ser amarelo. Fincava pé no gelo e no vazio. Não aquecia. Ventava. Uma ponta de cortina se erguia e ondulava. Num movimento lento. Quase poema. Deitado ali apenas de bermuda fina, quase esporte. Quase morto. Quase pouco pra sua idade. Quase rouco além da retina que brilhava. Metamorfoseava o ar em novas ondas e deixava seu corpo em apuros. Vento. Pele. Resquícios de ar que se embaçavam nos vidros. Não mais. Era tão só ao seu lado. Deixava a pele branca desaparecer, não fossem seus olhos escuros se diria um fantasma. Assombração desinibida esquecida sobre uma cama de hotel. Mas se não fosse sua a cama, nem seu o sentido e a sensação de perda, se pensaria morto. Mas o peito insistia em expulsar e amolecer o ar dentro dos alvéolos.

Naquela manhã quisera dormir mais um pouco. Esquecer que não haveria ninguém para preparar o café e que seus passos ecoariam como nunca na casa vazia.
Diário de um cineasta inconstante

Passou algumas noites em claro, queria pensar merda. Queria satisfazer sua necessidade de histórias novas e decadentes. Cheias de sexo fácil. Escovas de dente alheias e garrafas claras. Expansivas fantasias mal vestidas saindo do seu armário. Queria sair para jantar uma parte do seu cérebro, pra ver se acontecia algo de novo, se alguma idéia pulava em pânico e saia correndo boca afora, feito palavra ríspida. Queria amortecer aquele inviável e faminto instinto destrutivo que ardia dentro das suas veias. Aquela destruição que lentamente deixava a carne dos seus lábios seca e fazia o coração parar ou correr desvairado numa avenida prestes a ser implodida. Aquele seu coração que subia andar a andar com pressa, correndo deixando restos de si, só pra subir no último andar e escalar a ausência e num beijo desmembrado se jogar rumo ao infinito das distorções. Abria fogo contra a sua certeza. E mesmo assim permaneceu parado conversando sobre coisas banais com aquela que seria a dona do seu coração por muito tempo. E de todos os seus desejos. Ali olhando para os seus lábios finos fingindo uma certeza que não tinha. Na verdade o fogo adormecido vinha e voltava numa maré de silêncios e representações táteis. Os seus olhos viam-na nua em seus braços, cada curva da sua forma embalada por seus pedaços trêmulos. Mas de olhos abertos via a avenida que corria ao longe cheia de seus rastros vermelhos, faróis de uma distância que se distendia num novo adeus. Ficou imerso em besteiras, em vícios corriqueiros, chafurdou em noites densas cheias de sonhos que nunca conseguia lembrar pela manhã. Em seu diário, infinitos nomes rabiscados na busca de uma substituta.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Saindo de si

Precisava de alguma coisa que a fizesse sair de si. Deixar seu corpo lânguido e morno e denso e díluído numa penumbra. Tinha os nomes. Tinhas os números. Todos os artifícios conhecidos pra sumir de si. Mas faltava algo ainda. Algo que ela não conseguia delinear. Algo que na veia se incorporasse ao sonho, que não a destruisse no refluxo, na puxada da maré. Algo que a fizesse levitar e não rastejar. Tinha todos os contatos. Todos os imediatos. Mas as suas veias estavam cansadas. Suas pernas empoeiradas de vícios sobrepostos. Suas roupas encarceradas em cansaços alucinógenos. Pele. Pele. E mais pele ardendo por baixo da sua pistola. Uma nova maré sem romances se aproximava. Precisava de alguma coisa pra sair de si. experimentou o corpo do outro como recarga pra sua ausência. Desmentiu um sorriso na adrenalina frigida da manhã. Ausentou-se por dois segundos da atmosfera fracassada. Saiu pela manhã disparando palavras intensas embora dentro de si não houvesse intensidade alguma.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

No meio da avenida as três da manhã um corpo pediu socorro reconduzido pela vasilha vazia de seu coração

Agregou meia dúzia de ódios mortais a sua lista de impropérios. Aquiesceu sem muita certeza essa sensação tenebrosa e inevitável de perda. Perda do controle. Perda da sensação. Perda da perna. Perda da xícara favorita de cabo azul. Perdas intermináveis num calendários de números tensos e reprimidos. Revoltou-se em silêncio contra essa inabalável certeza da perda. Sobre o controle que se esvaia entre seus dedos. A masturbação descontrolada. Os beijos baforados em espelhos enrugados. Deitou-se sem prazer num sofá vermelho e mofado. Um morango mofado tremendo no meio da sala. Espremeu de si a palavra cantada. Deixou descer por seu sangue a frieza de um rio numa manhã de outubro. Deixou-se esfriar. Deixou-se assim quieto. Embora o desejo lhe consumisse as vísceras e dentro de suas carnes tudo tremulasse num pedido absurdo de liberdade. Suas pernas. Seus cabelos. Tudo parecia eriçado. Entristecido como o último macho de uma espécie abandonada. Cativo de suas próprias sensações físicas. Deitou-se fetal no sofá morango. A janela aberta deixava entrar a cidade que cuspia e relinchava. Suas veias pareciam linhas carbonadas calcadas num desenho original tosco e constantemente reapagado. Até o momento em que a folha cansada rasga. Sua pele. Suas veias pareciam queimar. E uma quimera ficava cintilando calçada de tênis e meias multicoloridas. Mesas de centro que se comunicavam por farpas. Ele perdia o controle. O controle. O controle. De tudo. De todos. De tudo. De todos. De todas as coisas. Que haviam existido. Suava. Suava. Dentro do seu olho escorria o suor, antes andava. Pisando nas retinas e causando uma dor palpável. Sentia a dor de estar vivo e preso aos seus desejos mais sinistros. Queria matar. Queria morrer. Queria ser de alguém. Queria ter alguém pra matar. Pra morrer. De amor. De amor escamado e costurado nas veias das manhãs. De tensão. De tesão. Queria esgueirar-se pra fora da sua imaginação e possuir grotescamente a sombra das mulheres que nunca amou. Queria deturpar as virilhas como pontas de cigarro. Fumar os pentelhos e esperar o barato chegar na retina. O cheiro. O cheiro. As veias ardiam. O cheiro. As veias comiam. O cheiro. A boca dela. E o cheiro. Intenso e acre. Intenso e luminoso. Cena de cinema ardendo dentro da válvula de escape do corpo. Num grito rouco de adeus a própria carne. Alastrou-se pelo sofá como um vírus, ardido. Queimado. Machucado. Víscera pura.
Saiu a rua ensandecido. No primeiro corpo depositou a razão do seu escarro.

Te amo

Eu preciso dizer isso antes de morrer. E eu vou morrer. Morrer consumido pelo amor que nunca tive. Que não tenho. Masturbado no meio do asfalto as três da manhã por um travesti obsceno e aproveitador. Da dor alheia provando aos fartos lábios. Deixando imagens pequenas refletidas no espaço. Obsceno. Obsceno. Obsceno. Perdido no espaço.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Bolhas de ar cor de carne quando sangra

Saltou dentro de um pensamento qualquer, tentando fugir das aflições que a vida lhe atribuia, em doses fartas, em copos largos, em pratos cheios. Queria um espaço de respiro, pro seu corpo que era quente, que era ás vezes até demente e solitário na arte de imaginar. Ficou avulso dentro da ossada, assim olhando parecia mais leve, transparente, mas dentro um fogo ardia nas estradas que levavam a saliva a boca. Naquele momento uma única palavra seria um abismo consolidado. Não havia certeza dentro da sua bolsa de expectativas. Entreteve-se escrevendo círculos e descrevendo pássaros numa folha de papel. Queria voar. Queria escalar bolhas de ar e sentir-se lépido, tragado até pela certeza do horizonte rotativo. Era um corpo omisso. Queria o compromisso de uma noite mal dormida, ao som de um baixo denso e uma garrafa barganhada na base de beijos. Jogaram-no fora de seus pensamentos. Ardido. Ferrado. Dentro de um metro as seis da tarde. Tiraram no amasso a poesia do seu peito. E deitaram-no flácido dentro uma estrutura rotineira sem abraços.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Densidade

Deitou a mão sobre o corpo quente. Deixou que nada mais importasse. Destilou uma série de palavras obscenas. Pornografia rendada, baixa e úmida. Seus lábios tinham um tremor a cada palavra. Sentiu-se leve destilando o teor do seu corpo, como se assim pudesse se desfazer dele. Deixou que toda a emoção escorresse retina abaixo e ao final no silêncio cansado que se fez, dormiu. Apenas assim. Em silêncio. Sem expectativas. De nada. Sentado no ônibus. O celular no bolso. Adormecido e leve

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Desperto

Despertei de um sonho chuvoso, mas não era sonho, realmente chovia e o frio embaçava as janelas. Deixando nelas fragmentos de respiro. E fui tomada de assalto por um pico de alegria direto na veia, sem meio termo. No frio me resolvo gente, me resolvo poema. Acordei com letras na ponta da língua, formigando. Formigando querendo sair pelas pontas dos meus dedos. E todas eram leves apesar do meu estilo acre. Eram todas leves e eram todas você. E elas tinham a beleza que você nunca admite e a paixão que eu sempre escondo. Que eu trituro dentro do meu copo de água toda manhã. Mas isso com certeza não me torna uma nuvem cinza, muito pelo contrário, me torna acesa. Me deixa viva. Porque a razão mas minhas emoções é um turbilhão de palavras e sentimentos desconexos. E pra isso existem apenas dois portos, duas vasilhas que podem me conter. Podem deter toda essa convulsão pesada e ao mesmo tempo bela. Que podem escutar um pouco mais dentro do meu silêncio entretido em amenidades. O amor é efêmero, a razão simplesmente rabiscada e eu não tenho lá muito equilibrio. Fica tudo dentro de um resquício de poema. Hoje a cidade acordou fria e eu por contraponto com vaga lumes queimando nos olhos. A felicidade é um brinquedo muiro frágil.
Sunset Boulevard again

Recorro ao cinismo. Corro na direção de um automóvel. Me lanço nos braços de um assassino de pulôver laranja. Me denigro com chá de gengibre feito numa chaleira de aço. Exagero o zelo dos meus entes. Deixo tudo dentro do meu organismo, estático. Aumento as doses de morfina pra aliviar a dor no peito. Inchaço. Faço resenhas para livros que nunca vou escrever. Alguma coisa como “ Literatura marginal clariciana introspectiva pra matar de tédio o coração mais molenga e a senhora leitura de livros Júlia e promover a melancolia massiva e histérica”. Coisas que nasceram engessadas por decreto dentro do meu corpo e que tento arrancar como forma de me esvair. Como um pensamento. Um gota de suor. Um susto. Um surto. Uma nota Dó.
Deixo subentendido certezas textos poemas dilemas edemas e silêncios psicomotorizados. Crio palavras ao acaso, na vã tentativa de me ludibriar, me desviar do fracasso. Imponho no rosto cravos e clavas, mostras de sinceridade e força, mas quão vago e saturado é o meu silêncio. Quão fraco é o meu progresso. E tão simples e entrelaçadas são as minhas sensações. Escrevo linhas e mais linhas deixando rastros de pão. Pontos,virgulas e traços. Procurando uma verdade que sei não existir. A incapacidade de dar o braço a torcer, saber perder ainda vai me condenar á uma loucura a la Norma Desmond.
Na sombra da Lua um riso escarlate de escárnio surgiu

A confiança pode matar um coração que pena pela delicadeza. Um dejá vu. Parece que alguém já escreveu essa cena. E você sabe o final desse filme, porque todos já viram esse filme na sessão da tarde. Mas esse personagem será o seu? Foi feito pra você? Sofrendo por antecedência pela certeza do ato. Pelo conhecimento dos personagens. Pela certeza do seu próprio corpo e pelas linhas já cansadas da sua mente. Você sabe todas as cenas dessa história. E o melhor seria pular a página e abrir um outro livro. Fincar o pé no imprevisível. Podar o texto dos excessos. Fazer um pequeno comércio e trocar algumas coisas de lugar. Algumas coisas que mofam, que paraliticas não tem onde morrer e fincam pragas dentro do peito, até o momento em que cansado e desesperado o ódio explode dentro da corrente sanguínea. Quando sem perceber as pessoas ficaram distantes e pequenas demais. Parece não haver solução para o soluço que incontido esmurra as paredes da goela. Para o choro que quer arrebentar as córneas. Não há como separar os sentimentos dessa cena, desse conto. Não há como pontuar. Dissimular a sensação viscosa da idiotice batendo na porta da sala com um riso grotesco e cínico pregado na cara. A confiança em algumas pessoas retorna ao movimento amedrontado do útero. A procura de um porto seguro, mas na realidade inexistente. Porque toda e qualquer sensação, pessoa ou sonho vão te decepcionar em algum momento. É um movimento compulsório. Uma maré que arrasta tudo. Draga. Desenterra antigos dissabores e deixa a boca acre pela amanhã, com resquícios de uma noite desprovida de sonhos. Um armário detonado. Gavetas que explodem madrugada adentro criando rusgas, vincos e pústulas antecedentes. Porque existe um faro animal para o perigo. Um gosto absurdo pela dor e acima de tudo uma vista que alcança mais que a capa benevolente da espécie humana. A aparência desprezível dos desabafos sem ouvidos. A claridade da manhã que se aproxima apodrecida, o brinde divergente com a solidão e o desejo arbitrário de ser livre, mesmo não sendo preso a nada.
P.D.A (PEIXES DEPRIMIDOS ANÔNIMOS)

Eis-me aqui me debatendo dentro de um aquário. Peixe viscoso sem nada melhor pra fazer. Esperando a hora da morte. Me debatendo de cara nas laterais desse aquário. Colhendo um pouco de ar. Um pouco de comida. Quando há a lembrança da minha existência. Quando eu me lembro da minha existência. Quando não me perco nas reverberações dos meus sonhos inutilizados nas paredes desse aquário. Quando não entre em conflito com a necessidade dos meus empenhos e a delicadeza dos meus desejos. Quando não me enrosco em algas pra sufocar. Eis-me aqui,me debatendo pútrida nas paredes desse aquário. Posso acrescer manchas nessa água salgada, mas não adianta de nada. Ninguém daria crédito ao suicídio de um peixe.
Dance floor

Pela primeira vez em muito tempo eu estou feliz. Realmente feliz.

Foram suas palavras debaixo da chuva que caia e molhava ainda mais seu corpo. Que antes se recobria de uma camada brilhante de suor e poeira. Descia a rua contagiada pelo movimento rítmico da música. Naquele movimento nada mais importava. Queria ser livre. Sentir o corpo fora da amarra. Queria por pra fora toda a frustração e toda dor. O chão respingava de suor e chuva. Sentiu a camiseta se fundir ao corpo. O ritmo dos quadris pareciam mover a terra em círculos máximos e espaçados. Tinha as mãos cheias de ferrugem se dilatava de acordo com o movimento. A cada passo sentia-se mais fora de si. E sentia-se realmente feliz por isso. Era extremamente claustrofóbico morar dentro de si o tempo todo. A principio resistiu. Discutiu. Ouviu todos os argumentos. Mas não havia mais jeito. Havia se infiltrado em suas veias como uma droga. A redenção parecia próxima e quase sufocante. Aí veio a chuva. E enquanto todas as superficialidades e acessórios se escondiam nos bolsos, toldos e guarda-chuvas, ela dançou a noite toda debaixo de uma chuva torrencial. Sentindo a roupa colada em seu corpo. Como se estivesse nua. Declaradamente avulsa. Sem senso. Apenas o movimento. E não era sexual. E não era delicado. Era visceral. Como se algo de selvagem quisesse escapar de seu corpo. Como se algo de anormal quisesse pousar na sua vista. Gritou ainda no meio de um bilhão de corpos avulsos que ora se compactavam numa massa ondulante ora se infiltravam nos vãos do calçamento. Gritou para que todos os pensamentos tensos saíssem de si de uma vez por todas. Estava cansada de museus. De fracassos. De visitas. Mausoléus que queriam habitar seus lábios mais uma vez com a brevidade de um por do sol. De um gozo. De um escarro. Deixou desprender-se de si junto com o suor todo o amor e toda a fissura das suas torturas mentais. Enfiou o orgulho numa caixa preta e o deixou colado ao peito. Dentro da pistola. Pulsando. Mais uma vez pulsando. Celebrando em silêncio algo que se transformava. Era um ato de despedida. Seu nariz sangrou. O sangue escorreu. A tensão aumentou. O corpo pendia no asfalto. Suave. Leve. Risonho. E acudido mais uma vez por fantasmas agradeceu a gentileza e o cuidado, mas estava irresoluta em não dar ouvidos ao passado. Que lhe abanava o rosto e lhe botava algodões no nariz. Agradeceu com um sorriso e voltou para a pista.

Eu não quero mais.

Afastou-se na rua molhada. Soltando os algodões sangrentos na lixeira, dissolvido sangue, rosáceo no seio do asfalto. Voltou a música. E o seu corpo ditou a penitência por anos de obscuridade.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Espaço transitório parte II

E eu disse mais uma vez. Mesmo quando não há chance. Mesmo quando não há nada. É, é a vida. Quem sabe algum dia em algum lugar que não esse. Quando eu nascer de novo, porque defitivamente não dá. Só eu não vi o fim do filme. Dormi.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Espaços transitórios

Escreveu duas linhas sobre uma mesa branca. Deixou a impressão de seus dedos leves sobre um pedaço morto de madeira. Assim um pedaço da sua alma ficou pregado a tudo que tocava. Como se desgastasse no simples ato de andar um pedaço dos pensamentos até sumir, até assumir a exaustão como linha de fuga. E o amor como moeda de troca, mas não um amor tenso, quente, movimentado, mas um amor gélido cheio de presenças estranhas e ausências. Apenas uma passagem pela epiderme. Muito, muito distante do sonho que havia dentro das suas retinas. Apenas um espaço entre as suas várias e intensas mortes por dia.
Espaços contínuos

Dentro de vasos. Dentro de portas. Através de Janelas. Grades impostas. Através de palavras. De vidros escuros. De óculos. De posturas. Muros. Apenas algumas coisas que deixam espaço entre os corpos. Além do silêncio impróprio.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Reflexões acerca de um filme
[Camile Claudel de Bruno Nuytten]

Presa de suas próprias paixões e aspirações. Como uma Claudel encarcerada dentro de si gritando e aspergindo inseguranças pelos poros como pólen de uma desgraça anunciada. Percebeu a intensidade de suas sensações quando não reteve na palma da mão a intensidade de qualquer acontecimento. Sentiu-se menor. E ainda menos que antes. Sentiu-se assim embriagada de uma volúpia e uma desnecessária loucura irresponsável. Ardeu em febre por dias seguidos. Aquela febre que regurgita a pele. O calor parece abraçar todo o espaço e a noite se intercala com o vazio. E o silêncio se torna diferente ao ser respirado. Tragado até a última possibilidade. Intensificado. Dopado. Armado. Ergueu a ponta dos dedos pra tocar um pedaço do próprio rosto, sentiu-se sombria. Na rua que naquela hora não abrigava nada alguém pode ter a mesma sensação. Será? Alguém terá essa sensação nessa mesma hora ouvindo a mesma música sentado numa cadeira parecida? A rua estará cheia de Claudels, Farneses e Fridas? Pequenas obsessões embaladas por ritmos cardíacos intensos. Compassados. Relógios sentimentais apostando tudo numa única esquina, numa só página de roteiro.
Ausência de si enquanto a noite martelou um novo ferimento

Ele sentia uma ausência enorme em relação a tudo. Pessoas. Carros. Casa. Papéis. Palavras. Linhas. Parecia distanciado de tudo naquele dia,seus olhos ainda um pouco inchados de um sono nauseado. Um sono ausente de sonhos, recheado apenas de implicações práticas e preocupações lógicas. Havia dormido fetal, inseguro, destrinchado. Mentalmente anestesiado. As noites passavam sem ação. Sem surpresa. E ele se via presa de um medo irracional de morrer sozinho aquela noite.
Desejou telefonar, mandar mensagens a alguns amigos e amantes recentes, talvez medir a atenção que receberia. Mas não teve coragem, julgou muito baixo. Mas se sentiu imensamente só. Jogado numa ponte de concreto a 200 m de altura, sem ninguém que pudesse ouvi-lo gritar. Era assim que se sentia. E embora não almejasse pular, sentia uma necessidade intensa de soterrar a retina chão abaixo. Escada abaixo. Senso abaixo. Estava errado? Sentia uma ausência tão grande de si, que nem mesmo conseguia ficar triste por muito tempo, mas mudo. Eternamente mudo. Apático. Esquecido num canto da sala de jantar. Lembrado apenas quando você precisa deslocar um móvel de lugar ou simplesmente passar. Uma cadeira. Um jarro. Uma flor de plástico. Dramático? Essencialmente dramático.
Apenas deitou-se sobre uma labareda de certeza e não se sentiu aquecido. Sentiu-se mais anestesiado. Sem força de cuspir um sarcasmo. Escreveu um diário nas páginas da lista telefônica aquela noite. Mandou tudo as favas. Chances. Incertezas. Dores. Anseios. Só não conseguiu se livrar daquela mania de pensar demais.

Só não conseguiu se livrar daquela ausência e daquela sensação de enterro que florescia nos seus lábios.
Obscenos pensamentos da garota do apartamento 34

Eu fiquei com vontade de escrever mais uma página desse diário imaginário para ouvintes surdos e cegos e imaginariamente presentes. Resolvi escrever o seu nome mais uma vez pra ver se havia retornado alguma infecção e olha que surpresa: seu nome ainda é lindo na minha boca, não tão lascivo nem acido nem batido nem misturado mais ainda é bonito preso com um alfinete nos meus lábios. Existe algo de ingênuo nessa minha tarefa de recolher memórias e ficar juntando pedaços pra bater uma punheta (embora esse não seja o termo exato para a ação soa mais comum e até mais bonito). Gosto da idéia de me tocar pensando em você, o adormecer fica mais doce e mais liso, escorregadio como uma música debaixo do chuveiro. Ou um pesadelo que se desvanece.
Alguma coisa ficou presa no bolso da minha calça ou na alça do meu coração, eu não quero ser Claudel nem Farnese. Tenho pânico de partir minha loucura em doses tão densas, ter uma overdose com a minha sensata estrutura sentimental complexa e relapsa. Funciono como um grande arquivo de sensações imaginadas, como uma paranóia constante, um momento drogado que permanece imaculado. Uma viagem dentro da veia da noite. Alguma coisa como um baixo transtornado batendo dentro da caixa torácica. Doendo. Machucando. Ardendo. Fazendo inferno dentro das linhas do corpo. Eu fico assim dentro de mim: peixe se debatendo dentro de um aquário cheio demais. Fico me espremendo dentro das minhas inquietações, mas permaneço bem quieta, bem quieta, escondida no fundo de tudo esperando alguém me encontrar ou eu me cansar.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Dois lances de escada

Desceu as escadas apressadamente. Sentiu a gola da camisa mais apertada que de costume. Arrastou-se para fora do elevador com ar pesado. Sentiu a vista tremula e a pele em fogo. Tinhas as pernas lentas e a veia em brasas. Sentiu a roupa mais justa do que realmente estava. Passou a mão no bolso oito vezes num minuto: tinha a certeza que o celular tocava quando este estava mudo. Passou pela portaria sem dizer bom dia. Passou pelo vendedor de balas sem dizer bom dia. Atravessou a avenida sem olhar para os lados. Estendeu a mão fria sobre o balcão da cafeteria num gesto de cansaço. Não havia feito nada era o começo do dia. Afrouxou a camisa que parecia sufocar. Pediu um café com a voz mais baixa que uma confissão. Ouviu mais ruídos que o normal. Sentia-se terminantemente mal. O café desceu amargo e queimante. A mão subiu a boca num soluço. O olho ardeu num instante. Sentia-se revirar brusco. Olhou alheio para os rostos no reflexo do vidro. Disformes pontos e linhas que não se encontravam. Debruçou-se sobre o balcão e permaneceu suado, mudo e estático.

Desceu as escadas imensas antes que ele acordasse num susto. As mãos ainda úmidas no corrimão. Esqueceu-se do elevador. Queria espaço pra respirar. A mão sentia tremula toda a forma que era reta. Mas havia uma curva em sua boca semelhante a um riso. Removeu do dedo o anel que ainda estrangulava. Tirou com um lenço um resto de maquiagem que pendia do rosto solto. Saltou a rua e ganhou espaço. Dando bom dia a todos os passantes e passados. Perdeu-se na rua invertebrada, dando curvas na espinha quando espichava. Comprou um sorvete eram sete da manhã. Passas rum e avelã.

Ele rodopiou parado. Maldita. Vadia. Filha da puta. Ela havia levado sua última seringa...a parte mais móvel do seu coração.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Uma letra no alfabeto

E eu queria passar todas as minhas noites em claro pra conseguir esquecer os erros que me perseguem ou que antes eu persigo. Na verdade a única coisa que sei é que me tornei uma pessoa mais triste depois de perder você. Menos sorridente, menos transparente, menos espontânea. Você era a medida certa do meu riso, da minha histeria, da minha mania de gostar de cinema. Você era o roteiro que eu ia fotografar. A valsa que eu não soube dançar, o passo que eu quis apressar numa noite de quinta. Eu te ganhei de presente, mas não soube aproveitar e agora que já não há tempo eu queria voltar no tempo e apenas ouvir o seu boa noite baixinho. Ver o seu riso delicado do outro lado da pilastra, gastar papel com especulações, gastar dinheiro com pequenos agrados. E eu só queria não sentir hoje aquele frio que eu sinto quando você passa a minha volta invisível. Quando você fala e se move perfumada e não me vê, antes desvia o olho da minha linha, dessa parede que eu me torno, presa do desejo que ainda tenho em mim. O seu perfume fica invadindo o ar, a epiderme e deixa meu pensamento mais leve, mas logo ele desaba quando ouço o som da sua moto rodando longe. Eu não me atrevo a martelar de novo nossa canção, existem tantas pessoas melhores pra você se render...e lógico que não espero que haja uma segunda chance. Não com você.
Recomendações para um espelho quebrado

Não me peça para responder perguntas complicadas sobre mim, além da minha cor favorita, todo o resto restringe-se a um grande mistério que eu não sei desvendar. Eu vivo de sonho. Todas as irrealidades me pertencem. Fora disso, não faço idéia do mundo. Além das imagens que ponho nele. Não me peça pra escrever relatórios ou fazer qualquer outra coisa muito concreta ou linear. Desses dedos, dessa boca nada muito obrigatório consegue surgir. Parece desprezo. Desleixo. Disparate. Mas esse sistema só funciona quando há chuva. Condição básica pra toda tristeza e toda calmaria.

Eu só sei ser feliz longe de qualquer coisa que tenha raiz.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Pequeno manual das chuvas internas

Gosto do frio. Quando a pele se sente real. Gosto da experiência do frio no lábio da epiderme. Nunca mais recebi mensagens de boa noite anônimas. Gosto da obsessão. Que inflama os objetos. Dá vida aos defeitos. Gosto do martírio de ouvir trezentos e sessenta e cinco vezes a mesma música noite adentro. E eu nunca mais ouvi o silêncio do mesmo jeito quando a porta se fechou atrás de mim. E nunca mais eu ouvi o silêncio do mesmo jeito, nem me ouvi. A pele fria carregada de sentires. A pele fria carregada de sonhos sem teto. O frio que adormece a boca, o fio de felicidade que escorre da boca. O limite entre o discernimento e a loucura. A pequena gota de lucidez no meio de tantas folhas de papel. O eu tenho saudades ecoando na boca da noite babada entre dentes e solos de baixo. Uma infelicidade corrosiva e lírica alardeando, bombardeando todas as reticências. Fica assim meio ausência. O frio na pele na calada da noite enregelando as palavras dentro da boca, que com fúria buscam saída, rasgando a pele da boca com dor, causando dor, sentindo dor. Mesmo sem sentir nada.
Gosto de coisa gelada amortecendo a língua. Música triste penetrando os ouvidos dentro de um silêncio que não se pode prever. Algo além de uma câmera de cinema rodando imagens desconexas numa manhã de chuva, na busca do quadro perfeito para um enxame de sensações. A pele que arrepia. O vento doloroso. E a vontade de permanecer debaixo do cobertor. Do útero. Onde nada pode mover. Onde nada pode repor. Ou sumir.
Os excessos de alegria arrombando a boca em sorrisos lixeiros. O gosto amargo da bebida pela manhã. É segunda ainda. E eu gosto do frio, a experiência do frio me faz sentir viva. Mesmo quando nada mais faz. Elaboro discursos sobre a crueldade das intenções que não tenho, não sinto, das coisas que não faço. Redijo um manual inteiro das minhas intempéries. Das minhas sensações de frio, dos estágios da epiderme eriçada. Da doença mal consolada na boca do corpo. Da boca. Do corpo. Da alma. Do gosto.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Todas as noites do ano
[pequeno discurso sobre um roteiro]

Todas as noites do ano, passaram incolumes, todas as noites do ano em silêncio. E eu resolvi escutar todas a minha coleção de músicas tristes na esperança de te esquecer. E eu resolvi provar todas as corrosões, tentando perder a boca, a saliva e a graça. Era um conto escondido no meio do disfarce. Era um silêncio de jeans e camiseta branca, James Dean revoltado, rolando de ponta a ponta. Todas as noites do ano passaram esfumaçadas até eu perceber que não havia perdido nada além dos meus segredos menos intímos. Eu não havia saído. E apenas isso já foi um desgaste. Todas as noites do ano agora, passam ao som de Chat Baker. A meia luz. Fazendo estrelas num céu escuro e silencioso. Nada além de uma calmaria. Vão se passar assim todas as noites do ano?

terça-feira, 8 de setembro de 2009

No momento deixo a brisa ir pra longe
deixo espaço vago
talvez preencher com algum recado
talvez deixar mais espaço
pra corrosão da boca
legado
de histórias roucas
que acabaram por me domar.
No momento
não há muita coisa
além da sombra
do espaço que respira
sem pressa de se findar
Depois das onze o corpo sentiu-se absorto

Talvez devesse ter sentido algo. Talvez. Mas o fato é que apenas se embriagou, riu e contou piadas das mais diversas. Agradável? Tentou. E acordou pela manhã com o gosto nauseante da cevada e uma chuva intensa desabando pelas beiradas da casa. Sentiu-se um pouco fraco. Até mesmo um tanto grosso. Aquela tentativa de ser agradável, mesmo que tenha surtido o efeito necessário, foi ainda assim impensada, um ato inconsciente e um jeito de ter certeza que o seu passado era apenas um passado. E por mais que quisesse em alguns minutos satisfazer sua nostalgia, sentia que não havia porque, afinal nem sentia. Dentro de seu peito nada batia, nem ressentia, mesmo quando xingava não sentia. Mesmo quando chorava não sentia. Estava novamente esvaziado de coisas humanas. De sensações humanas. Sentia-se meio elétrico, movido a algo que não podia ser expresso em beijos ou abraços, apenas por palavras capazes de derreter uma parte encoberta do céu. Apenas por palavras. Era incapaz de prever o tempo, mas sabia que independente disso, dentro de si choveria. Tanto quanto agora o céu desaba sobre todas as estruturas citadinas, sobre todas as esperanças corrediças, os silêncios resolutos. Talvez devesse ter sentido algo...

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Duas chuvas ocasionais em momentos distintos do tempo

Amor, sente o cheiro da chuva, ainda não veio eu sei, mas o vento trás o cheiro típico da chuva grossa. Que vai nos retirar todo o peso. Todas as coisas que eu nunca disse nessa hora ficarão inaudíveis. E não fará muita diferença porque você não ouvirá, mas pelo menos terei tirado esse excesso da minha boca. Essa coisa gosmenta que fica pesando e dando voltas, circulares náuseas. Meu bem, eu que já te amei tanto, eu que já me acostumei em não ter, fico às vezes a beira do abismo, quero abraçar o mundo, mas tenho braços curtos, quero fazer de tudo, mas não consigo o menor ato de coragem. O que eu fiz da minha face no espelho? Eu concerto ou estrago pra depois alguém remendar. Alguém se apropriar das rachaduras ou dos enfeites. Eu faço do amor um remédio contínuo pra minha tristeza, amor que nunca tenho sempre almejo, mas finjo que não quero. Essa coisa de chuva mesmo, que vem dando o tom e a intenção, mas se nega a admitir que é trovoada. Quando o céu se põe cinza querida eu fico escrevendo cartas pra você, pra todos os seus nomes, pra todas as suas formas, que eu já não sei diferenciar. Fico velho, mesmo sendo novo, fico torto. Fico envolto numa capa. Membrana de riscos calculados. Porque eu mentiria pra você? Porque eu me declararia de novo e de novo e de novo? Pelo simples hábito da submissão. Por estar vazio meu coração e mesmo agora que não descobri ainda aquilo que me move fico alheia, fico cheia de uma anestesia, de uma fragilidade que era toda sua. Fico assim nas condições ideais para uma inundação, para uma bola de demolição. Eu já me despi. Só espero que a chuva venha pra me levar. Que a intensidade dos meus desejos não me consuma até a exaustão. Que a lascívia que vive em mim não resulte numa solidão incomunicável. Consegue entender o meu recado? Existe uma incompletude muito grande nos meus braços, fica um vácuo, uma coisa cheia de cerimônia. Uma coisa estranha que não se aquieta. E eu só quero que os meus poemas não fiquem vazios de mim. Amor, se eu ficar quieta, se eu não cumprir os prazos, não me admoeste, não me cale a boca com um beijo. Fique em silêncio e feche a porta quando sair. Eu não sou exatamente o que planejo. Nem o que digo. Nem o que penso. Eu não sei ser, me entende? Eu não sei ser assim fácil, tranqüila, límpida. Eu fico no lodo, eu sou feita disso, dessa mistura rançosa de bolor, amor e ódio. Desse cheiro de bebida pela manhã, desses vícios e desses erros. Amor, não me jogue num carro avenida abaixo, não me deixe na madrugada sem relógio. Me dê um passatempo enquanto a chuva não vem. Me venda um desejo, um sorriso, uma mentira. Me venda qualquer coisa sua. Enquanto a chuva não vem você não consegue me ver. Mas os raios e o cheiro e o cinza do céu já se fazem presentes na sua janela e dentro de mim. Tudo escurece e não há mais como evitar eu me perco entre silêncios e ribombos. Fico entre a névoa e a escravidão dos meus anseios. Me enterre depois da chuva, jogue flores secas sobre a minha sepultura, entre minhas vértebras ainda resistirá alguma candura que eu não soube usar em vida. É trágico, é lascivo, mas é assim que as coisas acontecem no meu interior, quando meus dedos tocam suas partes e ficam inertes em algum pingo de suor. Amor, fica sem chance a nossa história. Eu sou chuva fina e grossa, não sei chegar sem trazer algo de monótono e que ao mesmo tempo é explosivo e aterrador. Mas eu, eu não mudo vidas, eu não causo os amores dos seus sonhos nem os sonhos dos seus filmes,eu causo isso aí que você não sabe que sente, que só sabe quando eu já fui embora. Quando eu já não sei. Quando vejo que atrás de mim daqueles cacos cavoucou-se uma nova primavera e eu não vou aproveitá-la. Eu sou um jardineiro, eu podo, cuido, semeio e rego, mas nunca me deito sob o sol. Eu nunca descanso das minhas trevas eu fico luzindo, fico ferindo meus braços e pernas pra tentar ficar no mesmo lugar, mas a minha boca persegue um indício de lugar. Lugar este que na teoria seria minha casa, minha concha, mas que não existe, além das grades dessas gaiolas. Minhas palavras são longas, tensas, insinceras e impotentes e você não pode ouvi-las porque a chuva chegou antes de mim, e carregou pra distância qualquer entendimento. Assim, sem aviso, negra e lenta, cai sobre a cidade uma mistura de silêncios, assoares de narizes e lamentos. E eu sei da inutilidade da minha nudez nesse momento. Já que nem mesmo a chuva pode me apagar de mim.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

C’est tu mon poisson doré

Se houvesse alguém pela qual eu colocaria as mãos no fogo, esse alguém seria você. De todas as pessoas que conheci e amei, só você ainda me surpreende, me entende, me acusa e me faz farra. É a única que quero proteger mesmo sabendo que não é necessário. Mesmo que você cuspa na minha cerveja e eu na sua numa bebedeira. São apenas fluidos corporais, coisas que já dividimos na dor e no prazer. Quando chorei na sua partida, quando gozei no seu corpo sedento. Quando rimos até a hora descansar num lado da cama. Se houvesse alguém que eu poderia confiar um segredo seria você. Se houvesse alguém pela qual eu faria todo o esforço sem querer retorno seria você. É até estranho pensar em todas as bobagens que falamos e fazemos quando juntas, duas crianças mongolóides com assuntos intercalados no mesmo momento, do lixo ao luxo em um segundo ainda é a nossa frase em qualquer estação. Uma parte da minha alegria reservo em saber que você está bem, agora com outro alguém, mas já se passaram tantos “alguéns” por você e por mim que tempo não faz tanta diferença assim. Sempre me perco em romances fadados ao fracasso, gosto do sabor do teatro, da angustia do amor que não se desenrola. Uso essa paleta de recortes e sensações pra moldar os meus trabalhos. Mas você sabe que eu não nasci pra ser de uma pessoa só, por mais que no fundo eu queira, a simples idéia da rotina me entristece e me faz ser um zero a esquerda. Prefiro saborear e rir dos meus erros, ter apenas cenas desconexas no corpo do que um roteiro inteiro previsível e morto. Gosto quando os molotoves estouram na barriga. Do amargo das bebidas pela manhã. De não ter tempo. De estourar prazos. Gosto de ser incondicional quando me convém. E o fato é que eu te amo incondicionalmente em qualquer estação. Coisa meio Rivera e Frida Kahlo. Mesmo que eu não te ame mais do mesmo jeito. Mesmo que eu já não queira domar seu corpo e você não discuta mais os meus defeitos. E sabe o que mais gosto na nossa história? As reviravoltas, as indecências e o conforto. Por mais que eu faça cena, você controla a luz, sabe que é assim que eu lido com tudo, imersa em confusão e em pequenas mentirinhas auto sustentáveis pra fazer uma tela mais bonita. Síndrome de artista. Porque eu posso te falar sobre qualquer coisa pessoal ou extraterrena. E às vezes você não precisa dizer nada, porque eu conheço um pouco do movimento das suas sobrancelhas. Afinal ninguém conhece ninguém direito. E é isso que faz toda relação humana uma delícia: os mistérios.

E mesmo que ninguém entenda os nossos xingamentos e risadas na mesa do bar você sabe que ainda é o peixe dourado no meu aquário. Porque o nosso passado não nos agride, antes nos subverte em novas manhãs para que possamos amar novas pessoas e ainda assim nos mantermos a salvo do tempo.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Quando a solidão chegou em casa

Lenta e dolorosa se arrastou pela sala a solidão. Em passos delicados, andava sobre fios prateados de saliva e suor que se entrelaçavam pelos móveis, em taciturnas pontes cristalinas. Deixou que seu paletó caísse por sobre a cadeira de cor tabaco, pesada e austera como tudo que a cercava. Porque apesar de ser mulher a solidão por vezes era homem e por vezes era leve e por vezes ria a toa. Mesmo no remanso da morte ela ria solta sem abrir a boca. Sem mover o músculo. Tinha o dom de mover para o passado até mesmo o machucado instantâneo do joelho batido. Pra casa da infância perdida tudo ia parar. O ontem era uma coisa impossível. As polaróides que ainda restavam em alguma gaveta eram coisas estranhas. Seus olhos fundos não sabiam desenhar aquelas figuras tropeçadas ao acaso na retina.

Deixou o corpo cair no espaço vazio, flutuar mesmo de uma janela a outra, a Lua lá fora espiava alguma outra janela. Uma pequena portinhola no meio de um paredão concreto de cimento. Cinza escurecido pela luz das estrelas recém despertas. Olhou ali do parapeito para aquela janela solitária. Mas como podia uma janela ali no meio do nada ser mais solitária que a própria solidão que dançava sobre fios de prata no ar da sala?
Palhaços sazonais - quando o espetáculo se torna um saco

“Je me sens seul
Très seul
Je me sens comme le petit prince
mas
Je n’ai pas une rose pour parler avec moi...”

E ele entrou num carrinho apertado e minúsculo e fez farra com outro palhaço. Sua roupa balançava e deixava pender cores por todos os lados. O sorriso pintado de orelha a orelha.

“Sinto-me extremamente só quando a noite bate e não há ninguém para dividir aquele conhaque comigo. Ninguém para me ouvir reclamar de dores no pé ou da falta de algo. Ninguém para pousar os olhos com calma, ninguém para apenas ouvir dentro de um silêncio guardado. E quando essa melancolia me invade resolvo dar um passo contra o meu ego e falar com você. Apenas mais uma dose da sua infinita consciência do mundo real. E quando eu resolvo dar um passo pra trás você me bate na cara usando uma tábua de cadernos com a minha própria caligrafia. Virou marasmo. Virou jogo farejado. Você sabe o início da peça e onde entram os intervalos.”

Saiu silencioso do palco. Atrás de si a carcaça de um espetáculo encenado até a exaustão. As luzes já rarefeitas, tão cansadas do mesmo espaço. Os aplausos surgiram apenas em placas escritas pelo contra-regras. Sentiu a maquiagem borrada e pesada. Deixou o palco meio arrastado. Quando a temporada teria fim? Aquele personagem já havia lhe sugado toda a energia e toda a característica.

“Eu rio mas não sei o motivo, fico indo e vindo sem força de quebrar pedras e abismos no caminho, removo a areia de suas casas, as conchas e as pequenas palavras. Mas dentro de mim tudo continua revolto, envolto em pequenos alvéolos de cimento. Pesa. Pesa. Pesa muito.”

Saiu para a rua revisitado por velhos ventos que sempre tinham o mesmo cheiro. Conhaque, ranço e bolor. Quando aquela temporada iria acabar e o circo mudar de lugar? Era a pergunta que não saia da sua cabeça enquanto descia a rua de volta pra casa.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Dois corpos+ um silêncio = um RG voando pela avenida Paulista no meio da noite

Jogue duas pessoas de uma ponte, completamente estranhas, haverá um diálogo melhor do que o meu e o seu. Porque ali no momento da morte que chega como tapa no rosto, não há escapatória, é o silêncio ou o grito. Ali apenas importa o que vai te confortar. O que vai te fazer viver por dois segundos. O que te faz viver? O que me faz viver por um segundo a mais? Por um dia todo eu achei que fosse uma parte de você que ainda habitasse minhas linhas, mas o seu socorro é um desapego que tira minha alma mais rapido do corpo.
O seu socorro é um cuspe no meu espelho, no meio do meu gatilho. Obrigado por me fazer ir embora. Eu não saberia ir sozinha, se não fosse uma faca cravada num momento em que estava frágil, e apenas um teco da sua voz me confortaria. Mas nem isso você foi capaz hein?
Abanou a cabeça e deixou - se mais próximo da Lua, por mais que se desviasse do caminho, sempre haveria uma desilusão ou infortúnio pra leva-lo de volta.
Rima para um dia de cortina rasgada

Um grande foda-se para o descaso
um grande abraço e um adeus imaginário
Um grande foda-se pras suas histórias
Um foda-se para os seus retratos

Nada mais irrita um ator do que o descaso do público com suas cenas. Desse teatro fiquei farto. Não vou pular da ponte, mas dar um pontapé nesses seus dentes seria apreciável. Te intriga meu "Q" de revolta? Aposto que não, é jogo marcado. Vou rir quando você descobrir que esse coração foi desapropriado.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Fotografias na calçada

Desceu a rua sem nenhuma expectativa, achou no meio do caminho algo muito parecido com uma fotografia. Achou bonito o rosto e até na sua imaginação, ensaiou um bom dia praquele rosto. Criou uma história praquele corpo e deixou-se andar. Parou num café e ficou aberto, com um café esfumaçando sua vista. Criou passado, presente e futuro praquele belo rosto, quantas vezes havia amado, sofrido, sido demitido, como gostava de ser tocado, se havia chegado a um orgasmo. Rendeu uam tarde inteira de especulações. Ao final cansado de tantas histórias abandonou a fotografia para que outra cabeça pudesse criar alguma outra história sobre aquele rosto ou até mesmo se apaixonar por ele. Ou ainda reavivar alguma recordação estranha nos baús da mente. Saiu do café. Sobre o balcão o rosto ainda sorridente num fundo de cores de Almodóvar.
Entre duas portas

Algumas mulheres são assim simplesmente, causam dores de cabeça, mas quando querem sabem abrir belos sorrisos. Abrem aquelas fendas no coração e deixam fluir por ele uma onda de calor e aí acabou-se a cara feia, a ferida cicatriza, o riso aflora solto e não há nuvens no céu. Algumas mulheres quando querem ser mulheres não precisam de muito além de um ângulo mais próximo numa fotografia, basta mudar a blusa. Algumas mulheres são simplesmente impossíveis, nunca sabem porque querem, mas querem, erguem seus pequenos ferrões e pronto, desce um veneno que não mata, mas que reserva alucionações prolongadas, por alguns, dias, meses ou anos. Algumas mulheres sabem se conter e se esparramar. Algumas são dificéis de soprar. E quando sopradas não apagam, acendem.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Na manhã um poema se estende solitário sobre a cama

Deixo para o sol a função de queimar, para o asfalto a de arrancar pedaços de pele no ato da queda. Espalho pequenas mentiras pelo ar pra completar a sensação de vazio. Não são mais as pessoas que me preocupam, todas viraram bonecos de papelão que se desmantelam na chuva. Alguma coisa aqui dentro fez clic e não girou a chave. Alguma coisa aqui dormiu. A pistola respira leve. Alguma coisa aqui morreu? Deixo para o dicionário a função de explicar. Deixo para o poema a função do lírico, apenas para o corpo a função do movimento dentro dos calendários incorrupivéis. Não dá pra entender? É confuso? Não, não é, eu apenas me cansei de pequenas mentirinhas pra tornar as coisas mais sensíveis, mais belas. A verdade é crua como um animal morto. Eu apenas deixei de pintar quadros todas as manhãs. As histórias por aqui respiram de mais, transpiram demais. Algo a mais, além da sensação. Deixo para o tempo a função de matar, apenas a mim, a função de viver, ser espinho e desculpe, quem sabe transpassar.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Micro contos - Quando a última das personagens atravessa a rua

Alguns detalhes sobre o garoto de vermelho
Ele mentia às vezes
Ele se apaixonava sempre
E ele odiava esse último detalhe


Ele saiu da estrada sem olhar pros lados, ele correu de abraços abertos no espaço, o jornal disse que foi fatal. Não havia mais livros na sua mochila, havia apenas o silêncio como carícia. E um espasmo leve como um poema, quando do alto ele se viu. Se alguém o tivesse abraçado alguns minutos antes ele não teria corrido, talvez? Mas agora não adiantava chorar em cima do caixão, não adiantava rememorar seus pedaços. Do alto cínico, ele ria entre as nuvens, como as pessoas são toscas.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Micro contos - Sozinho no além na beira da Lua

Do alto, perdido como o logo da Dreamworks, ele via toda a sorte de pessoas que se esgueiravam pela rua. Ali estava sentado bem na beiradinha quase pra cair, meio lírico, meio irônico, um escritor com asas seria uma visão muito romântica e ele era no fim de tudo um cínico e um cético. Ela andava por lá, escrevendo outros nomes, outros poemas usando os livros dele como suporte. Deveria sentir-se azedo, mas era quase leve, finalmente era uma nuvem. Às vezes resmungava uma ou duas músicas que o fariam relembrar alguém, mas era sempre um pronome, não um nome, não um corpo. Era uma ausência, uma sensação e não um gozo. Ali, na beira da Lua queria ainda ter o RG, para poder picota-lo e fazer chuva de si. Mas há muito já não estava em si pra renegar a identidade. Saltou num giro no ar, e quase numa pirueta espalmou nuvens e pedaços de memória. Ainda que sozinho e relativamente morto, estava feliz. Não haveria mais sobre si o peso de uma manhã sem sonhos. Havia para si um pedaço do céu onde ele poderia escrever todos os livros dos seus sonhos. Da beirada da Lua chutou um resmungo e seguiu com as mãos enfiadas no bolso das calças.
Micro contos - E ela nem soube a causa da morte

"Mas eu nem sabia de nada", foi a primeira coisa que disse ao ser chamada, "eu não sabia que eram pra mim aquelas palavras". Mas todas as portas, janelas, cigarros, garrafas, vícios, cadeiras e pregos e pedaços de ferro riram em silêncio e lhe deram um sorriso vazio de retorno. Todos sabiam, até os cegos, os iletrados, por mais que ele tentasse esconder, colocasse outros nomes, era sempre aquela figura pálida que o assombrava. E agora que o cadáver jazia com algodões nas narinas de nada mais adiantava ela dizer "amor".
Micro contos - E ele deixou-se apagar como um sorriso

Algumas palavras fazem rir, outras nada despertam. Nenhum dos textos dele eram cartas de amor ou pedidos de desculpas, apenas alguns segundos de fraqueza arquejante e descontrolada que dentro dele logo teriam fim. Nenhum dos seus escritos eram delicados ou entitulados, escrevia pelo hábito, pela febre e pela chance de esgueirar-se pelas cabeças e bocas alheias, um jeito de ecoar como um grito seco pelas gargantas. Porque a dele era rouca, muda. Algumas palavras dele agradaram alguém que ele não queria mais agradar, talvez pelo hábito de perder-se em indas e vindas, a credibilidade das suas sensações tenha sido repuxada como um riso falso. Um cuspe antes da queda do cadafalso, e o corpo pendendo a centímetros do chão. Ele era a própria imagem da rouquidão e do olhar perdido. Mas mesmo assim ninguém soube compreender o porque dele ter misturado arsênico no vinho e ter escrito entre espasmos até o amanhecer. E a sua última letra não foi uma carta de amor, nem de desculpas, foi uma elegia a sua estupenda capacidade de ser estúpido.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Micro contos - aquele tédio do qual você não quis me salvar

Ah tédio corroendo as veias e uma certa dúvida quando você não está. Tomei a decisão certa eu sei, mas já existe um alfabeto inteiro no meu lugar. No fundo o meu drama só serviu pra me dar tela, mas pra você foi apenas mais uma cena. Não fez diferença, saiu do teatro do mesmo jeito que entrou. E nos meus atos você não se remenda, fica de beira, de boa, de cena com qualquer outro par. Eu beiro a injustiça querendo tentar de novo, a pele macia, os lábios, os jogos, mas de nada vai adiantar, já haverá uma Marcela, Debora, Carla, Andreia, Carol, qualquer outro nome em meu lugar. No fundo eu odeio mais o ato do amor do que a minha loucura. Existência cretina e impura. Deu pra perceber que eu te chamo sem parar, que eu quase grito. Aquela sequência de palavras inúteis que você deve ouvir de alguma outra boca. Que a minha idiotice seja eterna enquanto dure, porra.
Na menor unidade de tempo

Misturou as tintas com vigor. Remexeu entre as paletas e os pincéis cobertos de poeira. Era um bom dia para desligar o celular. Um bom dia para não entrar na Internet. Um bom dia para deixar o telefone fora do gancho e dizer na empresa que estava doente. Era um dia de sol. E sua relação com ele era mais do que epidérmica. Colocou a camisa mais velha que tinha, uma xadrez azul de quadrados largos toda rasgada e suja de tinta seca, arregaçou as mangas, fechou cerca de quatro botões que ainda restavam. Tirou de baixo da cama o cavalete improvisado. Limpou com um pano as teias de aranha. Sentou-se de frente para a janela e deixou-se desligar apenas as mãos e o peito funcionando em uníssono. Deixou o som baixo. O riscar frenético do lápis ávido por deleitar-se nas brancas folhas, a tinta plástica e sedosa envolta em potes translúcidos. Imergiu em um romantismo todo dele. Apenas dele. E que ninguém poderia entender.

Deitou-se na cama apenas por gosto, não tinha sono. Ficou ali olhando para o teto ouvindo música. As notas entrando e saindo da sua cabeça dando voltas oportunas por seus lábios. Com as mãos debaixo da cabeça os pés jogados displicentemente de sapatos sobre a colcha azul de barcos. Os olhos fechados por alguns instantes. O sussurrar quase silencioso da sua boca numa letra apenas por ele conhecida para aquela canção. Sem levantar-se da cama pegou o baixo ao lado da cama. Encostou-o ao corpo e ficou ali dedilhando as cordas. Por mais incômodo que a posição pudesse parecer, ele não sentia desconforto.

Na rua movimentada os fones no ouvido. O jeans de lycra não muito apertada, a jaqueta e a mochila prendendo seu corpo em meio ao asfalto e as pessoas apressadas que passavam como borrões. Sentia apenas o som invadindo cada um dos seus músculos, uma coisa quase frenética. Soltava as mãos e permitia alguns movimentos compassados com seus passos.

Sentado debaixo de uma árvore o notebook no colo. Fones nos ouvidos. O sol como tela de fundo. Os dedos acariciavam as teclas como a pele morna de uma mulher, extraindo dela os melhores desejos e os mais fugazes gemidos.

Abraço o travesseiro, me dou o prazer, transo comigo pensando em você.

Suspirou e deixou-se lânguida sem os relógios

E do desconforto veio
Um desenho
Uma canção
Um passo
Um conto
Um riso