sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Duas chuvas ocasionais em momentos distintos do tempo

Amor, sente o cheiro da chuva, ainda não veio eu sei, mas o vento trás o cheiro típico da chuva grossa. Que vai nos retirar todo o peso. Todas as coisas que eu nunca disse nessa hora ficarão inaudíveis. E não fará muita diferença porque você não ouvirá, mas pelo menos terei tirado esse excesso da minha boca. Essa coisa gosmenta que fica pesando e dando voltas, circulares náuseas. Meu bem, eu que já te amei tanto, eu que já me acostumei em não ter, fico às vezes a beira do abismo, quero abraçar o mundo, mas tenho braços curtos, quero fazer de tudo, mas não consigo o menor ato de coragem. O que eu fiz da minha face no espelho? Eu concerto ou estrago pra depois alguém remendar. Alguém se apropriar das rachaduras ou dos enfeites. Eu faço do amor um remédio contínuo pra minha tristeza, amor que nunca tenho sempre almejo, mas finjo que não quero. Essa coisa de chuva mesmo, que vem dando o tom e a intenção, mas se nega a admitir que é trovoada. Quando o céu se põe cinza querida eu fico escrevendo cartas pra você, pra todos os seus nomes, pra todas as suas formas, que eu já não sei diferenciar. Fico velho, mesmo sendo novo, fico torto. Fico envolto numa capa. Membrana de riscos calculados. Porque eu mentiria pra você? Porque eu me declararia de novo e de novo e de novo? Pelo simples hábito da submissão. Por estar vazio meu coração e mesmo agora que não descobri ainda aquilo que me move fico alheia, fico cheia de uma anestesia, de uma fragilidade que era toda sua. Fico assim nas condições ideais para uma inundação, para uma bola de demolição. Eu já me despi. Só espero que a chuva venha pra me levar. Que a intensidade dos meus desejos não me consuma até a exaustão. Que a lascívia que vive em mim não resulte numa solidão incomunicável. Consegue entender o meu recado? Existe uma incompletude muito grande nos meus braços, fica um vácuo, uma coisa cheia de cerimônia. Uma coisa estranha que não se aquieta. E eu só quero que os meus poemas não fiquem vazios de mim. Amor, se eu ficar quieta, se eu não cumprir os prazos, não me admoeste, não me cale a boca com um beijo. Fique em silêncio e feche a porta quando sair. Eu não sou exatamente o que planejo. Nem o que digo. Nem o que penso. Eu não sei ser, me entende? Eu não sei ser assim fácil, tranqüila, límpida. Eu fico no lodo, eu sou feita disso, dessa mistura rançosa de bolor, amor e ódio. Desse cheiro de bebida pela manhã, desses vícios e desses erros. Amor, não me jogue num carro avenida abaixo, não me deixe na madrugada sem relógio. Me dê um passatempo enquanto a chuva não vem. Me venda um desejo, um sorriso, uma mentira. Me venda qualquer coisa sua. Enquanto a chuva não vem você não consegue me ver. Mas os raios e o cheiro e o cinza do céu já se fazem presentes na sua janela e dentro de mim. Tudo escurece e não há mais como evitar eu me perco entre silêncios e ribombos. Fico entre a névoa e a escravidão dos meus anseios. Me enterre depois da chuva, jogue flores secas sobre a minha sepultura, entre minhas vértebras ainda resistirá alguma candura que eu não soube usar em vida. É trágico, é lascivo, mas é assim que as coisas acontecem no meu interior, quando meus dedos tocam suas partes e ficam inertes em algum pingo de suor. Amor, fica sem chance a nossa história. Eu sou chuva fina e grossa, não sei chegar sem trazer algo de monótono e que ao mesmo tempo é explosivo e aterrador. Mas eu, eu não mudo vidas, eu não causo os amores dos seus sonhos nem os sonhos dos seus filmes,eu causo isso aí que você não sabe que sente, que só sabe quando eu já fui embora. Quando eu já não sei. Quando vejo que atrás de mim daqueles cacos cavoucou-se uma nova primavera e eu não vou aproveitá-la. Eu sou um jardineiro, eu podo, cuido, semeio e rego, mas nunca me deito sob o sol. Eu nunca descanso das minhas trevas eu fico luzindo, fico ferindo meus braços e pernas pra tentar ficar no mesmo lugar, mas a minha boca persegue um indício de lugar. Lugar este que na teoria seria minha casa, minha concha, mas que não existe, além das grades dessas gaiolas. Minhas palavras são longas, tensas, insinceras e impotentes e você não pode ouvi-las porque a chuva chegou antes de mim, e carregou pra distância qualquer entendimento. Assim, sem aviso, negra e lenta, cai sobre a cidade uma mistura de silêncios, assoares de narizes e lamentos. E eu sei da inutilidade da minha nudez nesse momento. Já que nem mesmo a chuva pode me apagar de mim.

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