terça-feira, 27 de outubro de 2009

Lá pelas três da manhã

Na noite os densos se revelam. Os pensamentos emergem como figuras num desenho inconsciente. Na noite os desejos interferem no manejo das mãos. Os segredos imperam nas bocas ociosas. E oscilam entre o silêncio e a derrota da voz. Na noite os letreiros se acendem e toda a vida esburacada sai a rua pra se vender e se trocar por novas histórias. Na noite todas as bocas entristecidas ganham contornos vermelhos e as lágrimas preenchem copos e goelas. Na noite o sexo permeia as nuvens e finca pé nas janelas. Na noite os pescoços se espicham sem nervosismo. A música entra pelas janelas e ouvidos e até nos buracos menos resolvidos. Na noite a resolução é um momento e não uma meta. Na noite a alegria é um cometa com hora marcada e ponto de ônibus. Na noite todos os gatos são negros e usam All Star de cano alto sujo. Na noite os baixos eletrificados entram no ritmo dos corpos. E os dentes voam nas palavras alquebradas. Nas quebradas de esquina os sonhos envelhecem. E na sarjeta se regurgitam em novas promessas de segunda-feira. Na noite todo corpo se torna pretensioso. E todo timidez encontra sua capa de invisibilidade. Na noite todo sorriso esconde uma fama e uma cama desarrumada. Na noite meninas resistem tensas nos cantos da pista. Na noite as experiências tem cor de azul profundo e metálico. Na noite as paredes ganham hematomas e restos de suor. Na noite as escadarias ganham chuvas mornas de urina prateada. Na noite existem olhos que não diferem postes de calçadas. Na noite existem grandes encontros. Na noite resistem grandes dúvidas existenciais. Na noite os dedos se torcem nervosos entre anéis. Na noite existem copos que oscilam entre o não e o sim. Na noite existe o esquecimento. Na noite existe o desconhecido. O repetido. E até o incompreensível. Na noite espreita a morte. Na noite a lua dorme enquanto seu corpo vaga branco por um véu de pretensões. Na noite existe a ilusão da força. Existe a grossa pele da certeza que se desfaz no primeiro farol de carro. Na noite há o charme que só a luz do sol consegue desfazer. Na noite há a beleza que não se pode representar. Há o palco que sempre fica cheio. Na noite resiste o sonho que pela manhã não reconheço.
Quando brotaram estrelas no fundo do mar
(I’m a lonely boy in deep of the ocean)

Eu sou um garoto solitário no meio do oceano. Preciso matar. E preciso morrer. Preciso de todas as coisas extremas e intensas no meu sangue. Sou um garoto deteriorado no meio do oceano. E eu tenho uma vida básica. Eu me sinto como uma concha abandonada. Onde eu fui parar? E todo aquele romance? E toda aquela lascívia? Eu cresci e me esqueci acolchoado debaixo da cama.

Deitei no meio da areia funda e úmida e gritei até meus pulmões se encherem de água. Sonolenta água experimentando um pouco da minha veia, da minha goela da minha voz atravessada por peixes multicoloridos, algas, gemidos, fremidos gelados. Não consigo me afogar, por mais que tente, não consigo afundar. Por mais que tenha uma pedra no peito, não consigo encontrar abrigo ou paz no fundo desse oceano. Não consigo dormir sem me perder. As mãos sentem-se sozinhas. E mesmo quando o delírio tenta preencher uma lacuna qualquer e um murmúrio sobe aos lábios, é frio. É vago. É rápido. Como uma música perdida numa rádio. Petit Prince. Um avião sonolento dentro do peito, uma turbina que não funciona e lá se vão minhas emoções e eu perdi meu cartão telefônico. E uma turbina que não funciona e faz um ruído no meio da noite incomodando as marés e as estrelas e as tristezas. Ficou cristalizado dentro das cordas vocais. Além de qualquer expressão. Tudo que sai daqui é lixo. O que realmente presta dorme. Eu sou um garoto dormindo no meio do oceano, não sei se já disse, mas é bonito ver a lua daqui do fundo a noite. Ela ganha uma capa azul escuro. E fica diluída em linhas fluídas. Daqui do fundo ela fica assim, quem sabe hoje eu consiga dormir e não sinta tanto frio. A areia entre os dedos do meu pé. Quem sabe não seja tão óbvio. Quem sabe eu possa ver um corpo cair no mar. Quem sabe eu possa ver uma pedra fisgar a nádega de uma onda. Eu vi um pássaro fazer seu último rasante da noite.

Eu sou uma espécie de carícia esquecida no fundo de uma pedra. O bruto escondido dentro do coração. A malha de metal antes da forja, mas eu me jogo no fundo do oceano pra me esquecer de toda a forma e toda a folha e toda a fome que me percorrem quando meus alvéolos tocam a superfície. Mas... eu não consigo me afogar.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Duas doses de silêncio

Se alguma vez parei de respirar o momento pedia mais que o meu corpo podia aguentar, não exatamente o corpo, mas o que havia dentro dele, o recheio também conhecido como alma. A minha anda tão cheia. Tantos pensamentos, tantos romances, devaneios, escrotices e coisas amenas. Pequenas palavras doces para um tanto de outras acres ou repentinas. Sem paciência para as pequenas ilusões que me preenchiam, para as pessoas que enchiam meus copos sem parar, meus quase vinte e cinco copos. Eu tenho um terror a esse tédio. Esse tédio provindo de pessoas vazias, momentos esteréis, apenas sombras chinesas, apenas de bonitas, insípidas. De mesas de bar cheias de parasitas, cheias de oportunistas. Um pouco cansada desse marasmo boêmio que apesar de delicado não me inspira o amor, nem a paixão. E a paixão é razão da minha existência. É por ela que eu me levanto, que eu rabisco, penso, produzo me encanto. E nesses dias, amores requentados não me inspiram, só me perdem e me entediam. Aqueles poemas de outrora, agora parecem pedaços de reboco caindo pelas frestas das mãos.
Se alguém perguntar por mim diz que eu fui por aí

Vamos sair dessa casa. Dessa amarra. Dessa carranca. Desgrudar desse telefone. Fazer um poema enorme pelo MSN. Juntar pedaços de fotografias alheias e paus e pedaços de janelas e montar uma instalação na esquina do seu prédio. Escrever um roteiro para um filme sobre um sol que tinha músculos e preguiça de levantar de manhã e sobre uma garota que tinha um cabelo estranho demais. Talvez uma ficção cientifica com latas de lixo e caixas de papelão. Nos fundos da casa vestidos de robôs espaciais com sacolas de mercado na cabeça. E tudo isso no fundo é bom demais. A tolice as vezes é boa demais. Serve de válvula de escape para toda uma série de pretensões, fantasias que só se realizam dentro das gavetas da cabeça. Para um mar de sonhos que não se realizam. Seria talvez um último grito de solidão, se não fosse ela a dançar no meio da sala. Até que fazemos um belo par. Minha solidão e eu nem somos mais tão tristes. Uma hora a gente se acertou e as vezes a noite uma vez por semana imitamos o Bergman e vamos jogar xadrez pra decidir nosso destino. Tudo muito lúdico. Muito prático. Automático. Nem é mais tão ruim ver da janela uma série de janelinhas acesas numa noite qualquer quando apenas um desejo de fazer algo de inusitado banhava as têmporas minhas. Veio o silêncio pornográfico dos pensamentos silenciados. Depois a apatia por pequenas derrotas. E eis que nem é tão preocupante o que vai ser daqui pra frente. Eu perdi de novo pra minha solidão, mas ela como boa companheira soube dividir uma taça de vodka. Então vamos sair daqui hoje. E jogar todos os livros do Caio Fernando Abreu nas cabeceiras alheias. Espalhar um pouco desse momento por ai como uma música que se ouve em looping até seu frescor se acabar e outra tomar seu lugar.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Corpo presente
(Carlinhos, um fode corpos)

Deus. Deus. Deus. Eu estou tão perdido. Que até invoco seu nome na boca do meu estorvo. Estou tão rouco e tão farto que me deito com diabos. E nem lembro o nome das vitimas. Deus. Porra. Me de uma dedada no olho. Me desperte. Me faça pagar mais por uma noite de insônia. Seja grotesco comigo que de gentilezas já estou farto. Me dê uma reza obscena pra lembrar a crucificação. E eu fico de pau duro com a crucificação. Me dê! Me dê! A droga de uma saída para a minha pornografia diluída.

Eu suo. Abaixo das minhas pálpebras um ardor como se uma queimadura reinasse ali. E eu já não pudesse ver com certeza todos os músculos do sol. É dia. É dia? Uma luz que não me recordo invade meus poros e por apenas um instante me sinto puro. Me sinto até salvo. Mas uma batida na porta deixa meu corpo tenso. Apenas um corpo, mais um corpo na minha pilha. Incinero desejos como se fossem pedaços de papel gastos, rabiscados. Ouço suas histórias, comento seus sussurros. Invento amenidades para tapar buracos e sinto os carrascos saírem das gavetas em risos e choros convulsos. Sinto a pálpebra queimar e o cigarro na minha boca parece mais denso, mais pesado, concretado. A saliva seca. A pálpebra que arde. Uma porta que se fecha.

E eu me sinto tão farto. Tão rejeitado. Como sombras os corpos se afastam silenciosos. E pela janela posso ver o carro virando na avenida principal. Pra casa? Pro trabalho? A roda cansa em se afastar para um caminho conhecido. E eu ? Onde eu fico? Quem vai me deitar num sono sem sonhos? Quem vai me propor um desencontro com minha alma? Acendo mais um cigarro e deixo que o conhaque amanheça mais uma vez dentro de mim e me dou o direito de quinze minutos de felicidade. A arrumadeira da casa troca os lençóis e me deixa camisas limpas. Silenciosa como um puma ela se esgueira pelos espaços. Nos meus quinze minutos de folga eu queria ter merecido a cretinice de ter me tornado advogado. Uma batida na porta. Ajeito a gola da camisa e apago o cigarro. Olhos vazios para mais um sussurro.
Arco íris negro

Um arco de imaginações. Alguns falatórios pegos ao acaso. O motivo estampado nas caras. E uma solidão avulsa palpitando entre os ossos. Será que dá pra entender? E eu sei que não vou conceber o universo que será expulso da sua cabeça. Não porei cores nas suas falas. E nem mesmo sei se aquilo que imagino fazer é o certo. Dá vontade de desistir assim de imediato. Mas me venço pelo cansaço. Aparentar a fraqueza que por muito me habita jamais. Finquei pé num corpo úmido e deixei que se esfacelasse como folha seca e levada a morte na terra. Um arco de pequenas constatações. Quem sabe o umbigo não esteja no meio da terra. Mas quem sabe ele esteja... Difícil dizer onde termina o palco e a cena e onde se inicia a multidão invisível e muda de rostos petrificados, entediados por nada entenderem daquele último rodopio na pista. Na verdade os segredos morrem em códigos que só o solitário decifra.

“ Tem tanto tempo que te quero” parecia uma frase apropriada pra se dizer, mas mesmo que rabiscada, voltou-se o taco de bilhar ao silêncio e do silêncio para qualquer outra conversa trivial. Ficou assim o desejo empolado no fundo de um copo de catuaba.
Quando o autodidata dentro de mim se estressa

Rabiscos em papéis amassados. Rostos toscos desenhados em posições idênticas. As mesmas mãos estiradas num apelo que não se sabe qual. Pede-se o que? Pra quem? Por que? Por que raios se pede algo e não se toma logo de vez na violência de um instante extremamente humano? Porque já não estabelecer a lei da selvageria confusa e visceral das relações inexistentes. Faz um tempo que não vejo alguém que me inspire um poema. Algo além de um arfar sujo numa noite de garrafas obscenas. Algo a mais. Simplesmente a mais. Faz tempo que não lanço letras ao vento. E esse oco me convém. Como uma árvore esperando uma tempestade absurda que nunca vem eu me sento na porta de casa esperando um automóvel desgovernado pra me destruir. Me destituir desse catálogo de fracassos. E mesmo quando não quero tudo se torna por demais pessoal. Tudo segue. E eu também. Sigo cega numa auto estrada lotada de caminhões. Qual deles vai me abater? Além dessa tristeza que por vezes me toma pela mão e me faz dançar a valsa que eu nunca lembro. Além de um passo menos espontâneo. Menos prazeroso. Ao contrário dos almanaques de dança de salão, se torna intenso e frouxo o meu discernimento acerca da minha beleza. E tudo fica adunco. Curvo. Disforme. Desovado. Inteligível. Emaranhado de linhas num formato não coreografado. Caligrafia horrenda sobre um caderno que poderia ter sido um livro de artista. Poderia se não fosse o acaso. As escolhas. Ou qualquer outra desculpa mais prudente.
Quando eu já não sei

Nas dispersas brumas dos pensamentos ficou uma dúvida em relação a minha existência. Um questionamento sobre o final de toda aquela história. Aonde daria todo aquele desgaste e excesso de voz? Já não sei. Fico indo de um lado a outro, como bola de pinball, batendo cara, peito, braço e coxa nas laterais desse aquário gigante. Arrancando a pele dos lábios em sucessivos ataques de raiva pela impotência das minhas sensações e pela ineficiência das minhas ações. É frustrante desejar a perfeição e de repente perceber que o que se faz é muito pouco. Que por mais que as horas se acumulem nos relógios é extremamente pouco o que se dá de si. Que falta muito pra se consumir. Que ainda não dá pra sumir, deixar que toda a paixão arda e queime a carne a alma e tudo que a palma toca. Pra mim que sou apaixonada por tudo que sonho, é intenso é perigoso é quase doloroso o processo de me deitar todas as noites e tentar dormir. De saber que nada do que tenha feito serve de referência para um dia na vida de um inseto. Que todo a pluma, língua ferina e volúpia alucinada nada são comparados ao prático, a matéria. Daquilo que pode ser admirado. Que o que eu faço é ilusório. Que a minha sede não se sacia com largas escadarias monetárias. Que a minha vida é solitária. E é muito frio ao meu lado, mesmo que do meu peito e retina saltem labaredas sanguíneas. Como fazer entender? Como me entender? Se já na primeira hora do dia me vejo cercada de incompletudes, folhas de papel, diplomas e certificados para uma vida vazia? Que aquilo que querem de mim não existe, não vive, não respira. Tento me por dentro de uma esfera, mas sinto que lá fora, o mundo comum não passa de uma selva, de um zoológico de animais tristes. Por que para infelicidade geral o homem é um animal triste que vaga por ruas e calçadas em ternos e aparências insólitas. Que para infelicidade geral da minha razão nada do que eu faça é racional. Eu não existo. Mesmo com RG, CPF eu não existo. E tudo que eu toco voa para longe, se esmigalha ou simplesmente desiste de ser. A minha palma finca a mudança mas não sede a ela. E esses dias tem sido distendidos como músculos no auge da dor. Já não tenho tantas respostas ásperas pra deslizar boca a fora porque uma série de perguntas queimam minhas pestanas e me tiram a fome. E quando deito vem-me um sono doentio, empesteado de sons, vozes e silêncios constrangedores. Ranjo os dentes num frio que não suporta meu corpo, um medo de fazer de tudo um castelo de areia. De não ter conforto na aparência que me detém.
Dois copos distintos



Ficou admirado com o tanto de bobagem que pode existir dentro de uma boca. Com o tanto de indecisão. Aliás, ficou quieto o dia todo esperando que alguma coisa menos tediosa ocorresse do que as já recorrentes chuvas de verão fora do verão. Com os poemas lindos que poderiam sair de dedos tão afeiçoados a liberdade incondicional que fere. Com pessoas que nada tinham além de si mesmas como refúgios vazios para seus desejos. Ficou admirado com a pequena imensidão de uma palavra. Ficou lirico. Afiou um pouco mais a navalha que cortava sua sensação. E esperou que de algum modo o mundo se movesse e que os dois copos distintos que brilhavam a sua frente se findassem vazios. E que sua cabeça rodopia-se mesmo que no fundo não tivesse vontade de fazer nada que não pudesse ser solitário.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Alex e a interminável manhã

Deitou em sua cama ainda quente de uma noite sem sonhos. Deixou que a prosa enviasse recados. Mudos. Aos seus sentimentos ressentidos. Fluídos. Que nunca secavam na memória. Deitou na cama ainda úmida de seus retornos. Adornos. Para uma política social pouco palpável. E muito dolorida. Dentro de si a infecção sem sabor nem cheiro da adrenalina. Veias reposicionadas. Cabeça arqueada no travesseiro branco. Da janela apenas uma nesga de sol confuso, que nem chegava a ser amarelo. Fincava pé no gelo e no vazio. Não aquecia. Ventava. Uma ponta de cortina se erguia e ondulava. Num movimento lento. Quase poema. Deitado ali apenas de bermuda fina, quase esporte. Quase morto. Quase pouco pra sua idade. Quase rouco além da retina que brilhava. Metamorfoseava o ar em novas ondas e deixava seu corpo em apuros. Vento. Pele. Resquícios de ar que se embaçavam nos vidros. Não mais. Era tão só ao seu lado. Deixava a pele branca desaparecer, não fossem seus olhos escuros se diria um fantasma. Assombração desinibida esquecida sobre uma cama de hotel. Mas se não fosse sua a cama, nem seu o sentido e a sensação de perda, se pensaria morto. Mas o peito insistia em expulsar e amolecer o ar dentro dos alvéolos.

Naquela manhã quisera dormir mais um pouco. Esquecer que não haveria ninguém para preparar o café e que seus passos ecoariam como nunca na casa vazia.
Diário de um cineasta inconstante

Passou algumas noites em claro, queria pensar merda. Queria satisfazer sua necessidade de histórias novas e decadentes. Cheias de sexo fácil. Escovas de dente alheias e garrafas claras. Expansivas fantasias mal vestidas saindo do seu armário. Queria sair para jantar uma parte do seu cérebro, pra ver se acontecia algo de novo, se alguma idéia pulava em pânico e saia correndo boca afora, feito palavra ríspida. Queria amortecer aquele inviável e faminto instinto destrutivo que ardia dentro das suas veias. Aquela destruição que lentamente deixava a carne dos seus lábios seca e fazia o coração parar ou correr desvairado numa avenida prestes a ser implodida. Aquele seu coração que subia andar a andar com pressa, correndo deixando restos de si, só pra subir no último andar e escalar a ausência e num beijo desmembrado se jogar rumo ao infinito das distorções. Abria fogo contra a sua certeza. E mesmo assim permaneceu parado conversando sobre coisas banais com aquela que seria a dona do seu coração por muito tempo. E de todos os seus desejos. Ali olhando para os seus lábios finos fingindo uma certeza que não tinha. Na verdade o fogo adormecido vinha e voltava numa maré de silêncios e representações táteis. Os seus olhos viam-na nua em seus braços, cada curva da sua forma embalada por seus pedaços trêmulos. Mas de olhos abertos via a avenida que corria ao longe cheia de seus rastros vermelhos, faróis de uma distância que se distendia num novo adeus. Ficou imerso em besteiras, em vícios corriqueiros, chafurdou em noites densas cheias de sonhos que nunca conseguia lembrar pela manhã. Em seu diário, infinitos nomes rabiscados na busca de uma substituta.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Saindo de si

Precisava de alguma coisa que a fizesse sair de si. Deixar seu corpo lânguido e morno e denso e díluído numa penumbra. Tinha os nomes. Tinhas os números. Todos os artifícios conhecidos pra sumir de si. Mas faltava algo ainda. Algo que ela não conseguia delinear. Algo que na veia se incorporasse ao sonho, que não a destruisse no refluxo, na puxada da maré. Algo que a fizesse levitar e não rastejar. Tinha todos os contatos. Todos os imediatos. Mas as suas veias estavam cansadas. Suas pernas empoeiradas de vícios sobrepostos. Suas roupas encarceradas em cansaços alucinógenos. Pele. Pele. E mais pele ardendo por baixo da sua pistola. Uma nova maré sem romances se aproximava. Precisava de alguma coisa pra sair de si. experimentou o corpo do outro como recarga pra sua ausência. Desmentiu um sorriso na adrenalina frigida da manhã. Ausentou-se por dois segundos da atmosfera fracassada. Saiu pela manhã disparando palavras intensas embora dentro de si não houvesse intensidade alguma.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

No meio da avenida as três da manhã um corpo pediu socorro reconduzido pela vasilha vazia de seu coração

Agregou meia dúzia de ódios mortais a sua lista de impropérios. Aquiesceu sem muita certeza essa sensação tenebrosa e inevitável de perda. Perda do controle. Perda da sensação. Perda da perna. Perda da xícara favorita de cabo azul. Perdas intermináveis num calendários de números tensos e reprimidos. Revoltou-se em silêncio contra essa inabalável certeza da perda. Sobre o controle que se esvaia entre seus dedos. A masturbação descontrolada. Os beijos baforados em espelhos enrugados. Deitou-se sem prazer num sofá vermelho e mofado. Um morango mofado tremendo no meio da sala. Espremeu de si a palavra cantada. Deixou descer por seu sangue a frieza de um rio numa manhã de outubro. Deixou-se esfriar. Deixou-se assim quieto. Embora o desejo lhe consumisse as vísceras e dentro de suas carnes tudo tremulasse num pedido absurdo de liberdade. Suas pernas. Seus cabelos. Tudo parecia eriçado. Entristecido como o último macho de uma espécie abandonada. Cativo de suas próprias sensações físicas. Deitou-se fetal no sofá morango. A janela aberta deixava entrar a cidade que cuspia e relinchava. Suas veias pareciam linhas carbonadas calcadas num desenho original tosco e constantemente reapagado. Até o momento em que a folha cansada rasga. Sua pele. Suas veias pareciam queimar. E uma quimera ficava cintilando calçada de tênis e meias multicoloridas. Mesas de centro que se comunicavam por farpas. Ele perdia o controle. O controle. O controle. De tudo. De todos. De tudo. De todos. De todas as coisas. Que haviam existido. Suava. Suava. Dentro do seu olho escorria o suor, antes andava. Pisando nas retinas e causando uma dor palpável. Sentia a dor de estar vivo e preso aos seus desejos mais sinistros. Queria matar. Queria morrer. Queria ser de alguém. Queria ter alguém pra matar. Pra morrer. De amor. De amor escamado e costurado nas veias das manhãs. De tensão. De tesão. Queria esgueirar-se pra fora da sua imaginação e possuir grotescamente a sombra das mulheres que nunca amou. Queria deturpar as virilhas como pontas de cigarro. Fumar os pentelhos e esperar o barato chegar na retina. O cheiro. O cheiro. As veias ardiam. O cheiro. As veias comiam. O cheiro. A boca dela. E o cheiro. Intenso e acre. Intenso e luminoso. Cena de cinema ardendo dentro da válvula de escape do corpo. Num grito rouco de adeus a própria carne. Alastrou-se pelo sofá como um vírus, ardido. Queimado. Machucado. Víscera pura.
Saiu a rua ensandecido. No primeiro corpo depositou a razão do seu escarro.

Te amo

Eu preciso dizer isso antes de morrer. E eu vou morrer. Morrer consumido pelo amor que nunca tive. Que não tenho. Masturbado no meio do asfalto as três da manhã por um travesti obsceno e aproveitador. Da dor alheia provando aos fartos lábios. Deixando imagens pequenas refletidas no espaço. Obsceno. Obsceno. Obsceno. Perdido no espaço.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Bolhas de ar cor de carne quando sangra

Saltou dentro de um pensamento qualquer, tentando fugir das aflições que a vida lhe atribuia, em doses fartas, em copos largos, em pratos cheios. Queria um espaço de respiro, pro seu corpo que era quente, que era ás vezes até demente e solitário na arte de imaginar. Ficou avulso dentro da ossada, assim olhando parecia mais leve, transparente, mas dentro um fogo ardia nas estradas que levavam a saliva a boca. Naquele momento uma única palavra seria um abismo consolidado. Não havia certeza dentro da sua bolsa de expectativas. Entreteve-se escrevendo círculos e descrevendo pássaros numa folha de papel. Queria voar. Queria escalar bolhas de ar e sentir-se lépido, tragado até pela certeza do horizonte rotativo. Era um corpo omisso. Queria o compromisso de uma noite mal dormida, ao som de um baixo denso e uma garrafa barganhada na base de beijos. Jogaram-no fora de seus pensamentos. Ardido. Ferrado. Dentro de um metro as seis da tarde. Tiraram no amasso a poesia do seu peito. E deitaram-no flácido dentro uma estrutura rotineira sem abraços.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Densidade

Deitou a mão sobre o corpo quente. Deixou que nada mais importasse. Destilou uma série de palavras obscenas. Pornografia rendada, baixa e úmida. Seus lábios tinham um tremor a cada palavra. Sentiu-se leve destilando o teor do seu corpo, como se assim pudesse se desfazer dele. Deixou que toda a emoção escorresse retina abaixo e ao final no silêncio cansado que se fez, dormiu. Apenas assim. Em silêncio. Sem expectativas. De nada. Sentado no ônibus. O celular no bolso. Adormecido e leve