sexta-feira, 27 de março de 2009

Do Diário de André - Insônia

Ficou a mercê de um sonho. Isolado entre as paredes acústicas do seu grito. Permaneceu insólito até o amanhecer recuperar a sanidade. Ardeu. Ardeu o corte na perna esquerda, provindo de uma convulsão imaginada na sala. Debateu-se tanto na tentativa de acreditar-se doente que se pôs a quebrar vasos e porta-retratos numa tremedeira salivada. Revirou os olhos em êxtase. Estava doente. Então tudo que via era verdade. Aplicou na veia uma dose cavalar. Inseriu no cérebro mais um verme romântico e desencadeou treze cartas de amor para pessoas sem nome que desandou a deixar nas portas dos prédios da vizinhança.
A uma da manhã levantou-se da cama, desatou a correr pela rua silenciosa atrás de uma loja de conveniências, precisava de cerveja e chocolates. Tinha certeza que eles viriam vê-lo. Seus amigos viriam. Era cedo. Um. Deux. Trois. Quatre. Cinq. Six cervejas depois e ainda estava sentado na porta da banca de jornais 24hs. Esquecera-se completamente do que havia planejado. Havia planejado? A madrugada estapeava fria suas pernas peludas. Levantou-se. Lembrou que teria que trabalhar. Havia muito trabalho. Sempre havia muito trabalho. Sempre. Sempre. Sempre. Ardeu. Ardeu o corte na perna. Pequena capa escura de pele seca. Ficou a mercê do sono. As três da manhã deitou-se de olhos abertos e encarou o teto e teve certeza que ele sorria. Pernilongos de pernas torneadas faziam banquetes nas cartilagens de suas orelhas e marcavam encontros. Podia ouvi-los sussurrar. Podia ouvi-los. Ah, podia. Fechou os olhos, mas por dentro tudo permaneceu claro.
Do diário de André - Passeios

Passou a ponte em Z. Atravessou a praça de luzes amarelas e recortes cinzentos. A cada passo um sombra projetada com mais duas encadeadas. Na igreja um nome apagado. Andava lendo os pixos e as letras. Cartazes. Letreiros. Panfletos. Fachadas. Nomes em camisetas. Procurava palavras que pudessem se distinguir do dicionário. Um código viável. Estalava a língua. Fazia calor e ao mesmo tempo ventava. Cruzou a Vieira sentido centro. O celular no bolso sem nenhuma mensagem. A agenda sem nenhum compromisso. Mas insistia em sumir. Dizia-se sempre muito ocupado. Saia cedo assim de casa e só voltava lá pela meia noite. Fingia cansaço e indignação. Mas rodava as horas com inquietude por ruas que já o sabiam de cor. De forma. De fonte. Não fazia nada. Não tinha nada para fazer. Rodava cinzento vendo as pessoas trabalharem, comerem e tudo mais. Não tinha um puto no bolso, isso se explicava com seus tantos cursos e compras. Que estavam sempre emprestadas. Que o mantinham sempre ocupado. Em verdade, não tinha nada e salivava. Fazia do seu desvario uma razão para permanecer estático. Em frente a praça sem dar um passo. Apenas imaginar a cavalgada. O ônibus da sanidade passou e ele nem viu. Rodando as ruas como um escravo de suas próprias alienações. Impedia-se de ser homem, menino ou até mesmo inseto. Rodava indefinido entre as estrelas de asfalto, pintadas das paredes dos salões e lojas. Passava ao largo da realidade. E a noite voltava sedento e cansado de suas próprias habilidades e incursões. Falava e manejava o ódio, as represálias e as caricias como um espelho, uma rua de mão única. E os dias passavam entre trabalhos imaginários e amores não consolidados, masturbados três vezes ao dia em lugares variados.
Do diário de André

Masturbei-me o caminho inteiro. Desde que o dia colocou seus olhos agrestes sobre minha pele até a hora em que os relógios cantam. Sozinho na avenida. Apenas o ruído de vozes distantes e indistintas. Perdido entre pessoas conhecidas. Deflorado entre vias e vidas. O dia passou num cuspe. Amanheci com as calças molhadas, pensava no cheiro dela, no movimento do seu corpo. Joguei paciência tanto que a perdi. Das dez da manhã até as sete, o dia passou pra noite num suspiro solitário.
Sozinho na avenida. Ninguém me dirigiu uma palavra. Deslocado. Sempre tentando ler os pensamentos enquanto eles ainda estavam quentes dentro da cabeça. Via-me triste sem a presença dela. Mesmo que dela não saísse nada. Estéril. Sacudia os pés em passos largos, fingida dureza, por dentro oco e perdido. Viam-me nos olhos sarcasmos, nem imaginando o que me sacudia. O cheiro dela. O cheiro dela. O cheiro dela. A latrina da memória produzindo resíduos. Sentado na estação. Corpo distante do sorriso esperado. Sarcasmo silencioso por trás dos trilhos. Dentro do trem esperando um abismo. Qualquer trocadilho. O cheiro do óleo e o cheiro dela. Espaçoso dentro das narinas. Hoje eu não a vi. Masturbei-me o dia todo. Joguei paciência até as cartas perderem a cor e o cheiro dela. Abri a porta. Sentei-me na cama, masturbei-me a noite inteira sentindo no orifício da insanidade o cheiro do óleo e o cheiro dela. Dói-me a veia. Morfina de merda.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Quando me engasguei com uma ruga

Entre o pedantismo e a auto ajuda. Pós moderno e contemporâneo. Chaga neutra no meio do asfalto. Ninguém nunca diabos me disse como um escritor deve ser. Algo meio marginal e suturador de lábios? Ou meio maquiavélico? Romântico? Imaginário? Libertário? Puto? Louco por você? Sei lá não existe um manual para a profissão e desde que o Paulo Coelho conseguiu uma cadeira na Academia vejo a coisa com franco descrédito. Se eu colocar uns rituais de poça d’água no meio das minhas páginas ganho um Jabuti? No máximo um cágado d’água.
Entro na internet (áurea rede dos pretensos escritores de beira de estrada, não me incluo no grupo. Sou de beira de esquina mesmo, daqueles que escreve nos guardanapos dos botecos da Augusta e sai com a boca suja. Medo de se sujar com as próprias palavras. Os textos são meios espirrados, numa constipação de metáforas desavisadas. Cortando as veias com frases serifadas) e me deparo com um verdadeiro banquete de palavrinhas amontoadas, doces, azedas, mal colocadas, bem arrumadas, desprovidas de senso, envolvidas em idéias grávidas. Olhinhos de lince percorrendo com avidez quilos e quilos de juventudes mal vividas. E aí incluo a minha. Uma geração inteira de pensadores que daqui a bons cinco anos estarão batendo de mala e cuia na casa dos trinta. Mas ainda gostamos de escrever sobre nossos terrorismos adolescentes. Não crescemos. E daí? Ainda uso all star e calça rasgada. Ainda ouço rock e coisas do tipo. Mas nem por isso saio correndo no meio do shopping com uma metralhadora contrabandeada ou mostrando meu traseiro no meio da paulista. O máximo que faço é destilar meu humor iraquiano pelas páginas dia após dia, numa tentativa de incutir algum juízo na minha própria cabeça. Que outra razão teria pra me depurar dessa forma? Bem, poderia procurar um psicanalista, psiquiatra, psicólogo ou psicopata, tem “psi” na frente resolve o problema. Mas todos os que conheço me incutem mais medo do que aquele que tenho de mim mesmo. Um toma benflogin com vodka, o outro arranca cabeça de bonecos de pelúcia no batente da porta. Que se há de fazer? Chamar um desses figuras para beber num boteco hollywoodiano é claro. E numa roda de cervejas e outros líquidos multicoloridos preconizar o fim da sociedade moderna.
Ninguém nunca me disse que escrever era um bom programa. Preferiam-me engenheira, mas só pra contrariar, nasci gay, um QI alto (que não me serve de coisa alguma) e propensa a fazer essa coisa chamada Arte. Típica filha da mãe que vai te dar trabalho,porque não consegue ficar dentro de um escritório, enfiada numa ridícula roupa social. É. Dou trabalho. Fazer o que. Me meti com linhas, letras, câmeras, roteiros e toda a sorte de coisas absurdas que vivem no estômago da arte. E sempre ouço aquela pergunta cruel e sedenta: “Quando você vai fazer algo que dê algum dinheiro?” Ta aí uma boa questão. Talvez escreva um livro sobre a experiência extracorpórea do meu coração quando ele quase morreu de susto um dia desses e faça uns desenhos apocalípticos e agridoces e ganhe muito dinheiro sob o nome de algum espírito. Psicografar é ótimo. Você não paga direitos autorais e ainda se o texto for ruim a culpa não é sua. A Zíbia Gaspareto que o diga. Quem disse que literatura não rende?
O fato é que você não precisa ser um Machado ou uma Clarice, basta você acertar em cheio (com um taco de beisebol) no rim do seu público alvo. Pronto. Best seller instantâneo. Quase posso imaginar a formula vendida por quilo nos mercados on line.

Quem sabe arranje um emprego fixo e me acomode num escritório e fique feliz dona de uma obesidade mórbida e dentes brancos. Até que esta morte chegue a mim continuarei na minha trilha de tijolos amarelos, procurando a hora certa num relógio imaginário.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Cento e cinquenta e cinco pingos de chuva

Felicidade sozinha é um membro do corpo do medo. Ás vezes por ele deixa-se de fazer, falar, mover, mas afinal de que serve podar-se por conta disso ou por conta de outras pessoas? Somos seres sociais e não selvagens, respondeu-me uma pessoa. Mas como ser um ser social pleno se você não estiver realizado consigo mesmo? Não se trata de um bom trabalho, filhos e toda essa resposta simplista, trata-se de saber-se inteiro. Pensar-se poema e enredo, e não estrutura e desejo. Ser sozinho às vezes é mais difícil e ás vezes é fuga fácil. Varia. Depende que tipo de personagem a gente escolhe no armário. Pode-se variar como num teatro. Fazendo um filme debaixo da chuva que cai numa porrada sem igual. Mohammed Ali espancando telhados.

Isso parece tão óbvio, mas tantas e tantas pessoas escondem-se atrás de espelhos, palavras e outras máscaras e desculpas gastas para não existirem. Deixam que seus rostos se desgastem enferrujados dentro de uma gaveta. Suas pistolas nunca dispararam um único tiro e seus dedos nunca sofreram um arranhão. É como ler uma palavra no dicionário por não ter o que fazer, o sentido dela está lá, mas nunca se sabe o que fazer com ele.

E ela passou pela porta, olhou a chuva caindo e deparou-se com pequenas cascatas geladas dependuradas nas calhas, barcos de papel ondulavam nas valetas. Era uma noite fria de chuva e não havia muito o que fazer. Pessoas corriam em desespero, protegendo suas bolsas, papeis, cortes de cabelo. Deixou o guarda-chuva dentro da bolsa e andou pelas ruas. Num balé de guarda-chuvas ficou nua. Deixou que tudo escorresse sobre sua face.

Sentido. Guarda-chuva. Feiura. Medo. São só palavras. E dentro delas não há um abrigo real, apenas uma espera momentânea que se esvaí no primeiro assobio da chuva.

terça-feira, 17 de março de 2009

Sinfonia de acertos

Ouvia as canções com ouvido nomeado. Cada letra fazia sentido dentro de seu estado. E mesmo que numa delas soltasse amarras de um corpo logo se revia atado. Dependurado sobre a sua pele como uma camada de sol. Em silêncio gozando dos pequenos deleites que sua imaginação lhe oferecia, sentindo com calma cada pedaço da calçada. Seguindo uma trilha de nacos de emoção. Ali, não mais afoito, na aparência dominado, por dentro caótico e enramalhado de flores diversas. Rosas, gardênias, cravos, margaridas e girassóis. Ouvia as canções enquanto o tempo passava e tanto mais se adiava o reencontro, mais se agigantava sua pressa em fazer-se mais tranqüilo. Transformando em belos recomeços os imprevistos. Nada estava definitivamente perdido. E afinal de contas o que era o definitivo? Essas coisas dependem de suas inter-relações com outros objetos, sentimentos e navalhas de tempo. Nada é definitivo fora de um espaço delimitado. Apenas no fecho da mão a morte é definitiva para uma semente, se jogada a terra, continua seu curso natural. A diferença é que a natureza humana é cheia de percalços, de lombadas. E de nossas tristezas armamos reais dramas e pequenas comédias em tentativas parcas de esconder ou sobressair. Nada mais antinatural e nada mais comum.
Ouvia as canções e preenchia-se de sol na tarde sem interlocutores. Há muito regia sozinho sua sinfonia de acertos. E esta era longa, cheia de erros e pequenas incertezas. Mas com calma, regia pedaço à pedaço. Em si havia uma esperança e um amor, amor no sentido de querer do mundo, pelas pequenas coisas que respondiam ao chamado do seu nome e que por breves espaços de tempo o possuíam e se deixam possuir. Os laços que carregava eram muitos, e por vezes os esquecia. Alguns já se haviam desatado devido ao desleixo, outros resistentes aprendiam o tempo e o modo de seu “dono”. Assim povoado de pequenos carinhos, não se via incerto em relação à seus propósitos. Ouvia as canções, e embora tivesse o ouvido nomeado, sabia que haviam outros tantos nomes ali encaixados.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Se do silêncio brotassem segundos corpos

E o estranho efeito continua, agora como a letra da canção. Basta uma sombra sua para que eu me desdobre numa tristeza largada. Porque a boca resolveu retroceder e as palavras parecem estúpidas. Não há nada que eu possa dizer à você além dessa canção. Que você não ouvirá. Que você não lerá. Não há nada na minha linha que te tencione, emocione. Sou um fator nulo na sua esfera de ação. Me sinto nua e desdentada. Feia mesmo, a alma descolorida. Mas minha pistola pulsa intrigada. Eu queria disparar e acertar em cheio seu peito. E sobre ele adormecer.
E se dentro de você eu dormitasse, toda a paz que não existe nas minhas letras e linhas acenderia. E dentro de você eu construiria meu ninho e dentro de mim não haveriam maisa alertas e avisos.

sábado, 14 de março de 2009

This strange effect

A quase todo momento esbarro na fragilidade afoita de meus argumentos. Quantas pessoas se perderam em listas amórficas de telefone que nunca tocaram, quantas se foram porque simplesmente deu no saco? Expressão vulgar para um sentimento desconexo. Quantas pessoas se magoaram e quantas arderam de ódio puro? Quantas esmurraram muros numa busca incessante e o derrubaram? Quantas canções foram escritas? Não vale mesmo nada esse tempo? Todas as horas escoam pelos calendários e relógios indagando quão mais, quantos mais precisam partir? Exijo paciência. Mas nem todas as pessoas do mundo a possuem em doses cavalares, eu mesmo me encaixo nessa lista. A solidão imposta é mais amarga, porque se julga justo o exílio. Mas e Drummond e Vinícius o que diriam, se os carrego nos bolsos? A Lua pequena se esfacela entre dedos pegajosos, o tempo torna tudo empoeirado, a retina revirada cansada de olhar apenas para dentro de si. Coloque um copo sobre a mesa e observe seu reflexo até seu globo ocular cair. É mais ou menos essa a sensação. Ancorar sobre o balcão e ficar ali apenas desejando o movimento, mas sem ter um centavo no bolso para incentivá-lo. Alivio? Alívio? O que diabos significa essa palavra? Onde se escondeu essa prostituta que eu não a encontro? Eu pagaria fartamente por seus serviços. É assim que me sinto. E apenas a dignidade me impede de chorar na via pública. E apenas esse orgulho medonho me impede de cruzar a rua. E apenas ele fica introvertido quando portas e bancos balançam em esmurros acrobáticos. E só ele arde quando o sangue escorre dos dedos macerados e dos joelhos esfolados. Eu prometi não saltar na frente de um carro.
E o que falta nessa vida? Eu juro que não sei, quanto mais procuro, mais afundo e menos tenho vontade de sair. Quero me perder em silêncios despropositados, em palavras que nada tenham de verdade além de sua beleza plástica. É, eu quero uma redoma. Eu quero uma mentira crônica invadindo todas as portas e gavetas. Quanto mais eu tento menos osso eu tenho pra roer, menos músculo eu tenho pra correr. E quanto mais eu remexo, mas poeira entra no meu espelho.

Quem disse que é fácil ter um quilo de solidão no bolso? Uma hora ela degela e lambuza as beiradas da calça. Quem vai lavar essa mancha?
Congresso regional de filosofia de boteco

Saudade, palavra triste...uma música se inicia com esse verso. Mas quando a gente sabe o que é saudade? E porque diabos, sente esse negócio? Assim como tudo, saudade é apenas uma palavra que a gente escolhe o recheio. Nada demais, nada de menos. Engraçado, como tudo depende de um ponto de vista, palavras não são diferentes. Você escolhe qual deseja usar e o sentido que virá embutido. Quase todas as coisas sentidas não conseguem ser rotuladas por palavras. Afinal, amor, ódio, paixão, prazer não são balas que você consegue embrulhar. Não são tangíveis. Nem tem sabor ou constam na lista telefônica. Não se compra por peso, você não pede “ hey, por favor grande, me vê um quilo de pavor. E pavor fresco viu, não me venha com pavor requentado...” Isso não acontece, a não ser no Seinfield. Mas aí é outra história.
Algumas perguntas vem embrulhadas em sacolas de mercado, porque são tantas que não é possível carregá-las nas mãos. Se for um caso patológico como o meu, é melhor pedir entrega em domicílio. Porque as minhas questões limpam as prateleiras. Imagine assim, você entra num mercado existencialista, olha o jornalzinho de ofertas: “ Medos e pânicos apenas R$2,99. Promoção imperdível sentido da vida por apenas R$ 18,99” Aí você pega um carrinho e percorre as prateleiras e gôndolas. E as perguntas vão enchendo o seu carrinho, Fake Plastic trees ao fundo, seus ossos vão ficando puídos na terceira prateleira e você sai correndo ou sai dali velho e com uma passagem sem escalas para o Tibet.
A razão pela qual as pessoas usam palavras é porque a boca exige algum alimento, a saliva precisa se reproduzir. E porque é mais fácil, elas são rostos mendigos, cada um acha que elas serão esquecidas assim que expelidas. Porque elas já saem mortas. Então todos os dias milhares de cadáveres saem das nossas bocas e deságuam num esgoto mental, onde não é possível reconhecer saudade, chaleira ou carteira. Absurdo é um contexto praquilo que não se entende, impossível é apenas uma questão de ângulo. Você não perguntaria a Lua se ela é possível. Como ela não cai, se ela fica grampeada no celofane do céu. Você acredita nos livros de física e tudo mais. Então porque você pergunta se é amor ou ódio? Há coisas que podem ser sentidas, não nomeadas e largadas nas gôndolas mentais para morrerem de asfixia por poeira.
Cada dia que passa penso em falar menos coisas que realmente importem. Mastigo mais bobagens e deixo que isso divirta esse ou aquele ouvido ou nenhuma orelha. Deixo que alguém goste do som da minha voz, mas não gasto mais meus sentidos em palavras. Não me preocupo tanto em classificá-las. Embora, olha que coisa engraçada, gaste metade do meu tempo ordenando palavras num suporte qualquer. Fico assim, indissociável delas. Analiso-as, forço-as à terapia. Todas as minhas palavras são acidentadas e já foram rotuladas um dia, agora elas são pineis e vagam pelos meus dedos noites e dias. E quando por algum motivo não sei o que DIZER, elas se metem escritas nos meus dedos. Não compraria um quilo de pavor, mas até alugaria uma grama de sanidade. Trocaria a saudade por qualquer outra coisa. Reordenaria as palavras e deixaria que a dança se conduzisse como num baile de máscaras, e num momento oportuno apagaria as luzes pra saber o que fariam sozinhas e escondidas todas essas palavras.
Talvez assim, se as visse nuas, desprenderia de mim esse rochedo. E deixaria que elas virassem apenas casuais convidadas e não inquilinas caloteiras.

Elas sempre pregam peças quando você não olha, talvez tenham me pregado uma. Talvez agora?

sexta-feira, 13 de março de 2009

Do lado de fora da casa dos Sonhos

Quantas textos já escrevi pra você? Eu mesma não saberia dizer. Perdi a conta dos códigos que montei pra lembrar ou antes para não esquecer. Porque são coisas diferentes. As músicas que às vezes te desenham, as resenhas dos seus filmes favoritos num site qualquer. Por mais que eu tente esconder, sempre chega um vestígio meu aos seus ouvidos. E nessa hora há o silêncio e o descrédito. Prometo não fazer de novo, prometo não beber de novo, mas velhos hábitos são sempre difíceis de se livrar, são brinquedos da infância, inúteis, porém ternos e encharcados daquela querosene que queima na memória. Cavalgada das Valkírias pelo céu azulado de um pré-março. Mas sei que prefere o Bolero de Ravel. Faltam poucos dias para ver seu rosto novamente, poucos dias para ser reprovada ou não no teste da represa. Será que consigo represar todas as palavras e torná-las silêncios agradáveis que tudo digam sem te ferir? Será que consigo secar a boca? Não mergulhar nos seus olhos castanhos e vivos, respirar do seu ar lento e gradual? Será que consigo isso em silêncio, a distância? Como uma depravada que se masturba vendo fotos. Será assim o meu tempo ao seu lado, chafurdando nos detalhes que você esquecer ao acaso? Não sei, e na verdade não me importo. Você sabe, ou melhor imagina. Mas imagina corretamente a ordem das cenas? Porque eu só me dei conta que não consigo te esquecer, quando beijei outros lábios e nada senti. Aportada numa boca cheia de névoa me vi na busca do seu calor. Do seu riso. Dos trejeitos, das manias, da letra de forma ondulada e ás vezes misteriosa. E mesmo sabendo que nada posso esperar, o coração fica anestesiado, pueril quando apenas sente a proximidade do seu. Se isso não for amor, todos os livros mentiram, Shakespeare, Clarice, Dostoievski, Almodóvar, todos mentiram em seus suportes. Escreveram suas mentiras e eu acreditei. E eu acredito. Porque só eu sei como é ansiar tanto assim, na beira da loucura, dançando no abismo dos relógios tentando apagar os seus vestígios. Mas numa vaga, assim que dou as costas e tomo tudo por findo, uma nota do seu perfume vem e se enrosca e meus doces sonhos recomeçam.
Então pra que mentir? Posso até mentir pra você, fingir indiferença, de dar te presente os xingamentos mais pitorescos, mas pra mim não adianta. Eu sinto essa chama. E o ar ao seu lado é cheio de som e fúria. E longe de você eu fico indecisa entre a forca e o calendário.

Eu nem preciso colocar a sua letra num poema, dou todas as dicas pra você se reconhecer e me odiar por ser incapaz de negar a existência do amor. Por ser incapaz de decepar a cabeça do mesmo com um faca comprada no Polishop. De ser banal. De ser cruel e indelicada. De ser canalha.

Quantos textos eu escrevi pra você? Desses quantos você leu e quantos jogou fora discretamente na lixeira do banheiro? Quantos eu coloquei na caixa de areia do meu gato? Não sei, esqueci de me perder nos números e fiquei estacionada do lado de fora do seu sonho esperando a chuva parar pra lhe convidar para um café. Mas você nunca sai.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Quando mais de um corpo uivou na noite sem estrelas

Todos os corações uma hora param a respiração. Todas as pistolas se questionam sobre engatilhar ou ceder. A todo instante chega um lamento, um desespero ou uma névoa de felicidade. A vida é assim, montanha russa sedenta de curvas. Fazer o que? Hoje você termina um namoro no telefone, em outro canto da cidade alguém se apaixona depois de muito tempo e alguém se redime de um velho tormento. Alguém ouve música. E alguém escreve.

Há formas e formas de sentir, de mentir, de viver. Nada mais óbvio. Mas quando você não tem saída além do silêncio? Ai, da-se um tempo. Quem sabe melindrar em linhas até que a sensação se espalhe e o sentimento se perca numa névoa incolor. Talvez engatilhar a pistola e remover de vez da história as palavras, destrancar a goela e deixar fluir, mesmo que o resultado seja nulo ou negativo.

Hooverphonic numa trilha de descanso atrás do coração que se debatia. Ali, distante, ela nem mesmo poderia imaginar, como o coração ficava alheio de si, debaixo da pele, remoendo, como dizer que havia algo ali que não tinha explicação. Ah, a gente nunca sabe dizer essas coisas, eu pelo menos sempre digo do jeito errado. Mas alguém em algum lugar soube dizer. Alguém soube fazer um quadro mais perfeito na imaginação. E nunca há uma ordem para as tracks que surgem. Imprevistos.

HOje algumas pessoas choraram, para elas, apenas ouçam o tempo. Nem mesmo a dor resiste pra sempre, até ela se cansa. Não há tantas lágrimas no corpo.

Hoje, algumas pessoas esmurraram a parede, arranhem os conteúdos e não as pinturas. De nada
adianta derrubar todas as estruturas, se por dentro já está tudo abandonado. Que graça tem demolir um mundo onde não mora mais ninguém?

E pra mim, foi no fim de tudo um dia arranhando, e pra você, eu deixo todas as palavras que não sei dizer. Que eu não preciso, o meu sentimental fica indo e vindo feito maré. E talvez lá na frente fique um desenho menos amargo feito com fios da minha saliva.

Mas por hoje alguns pistolas precisam de menos balas, de menos alvos e talvez até de uma boa noite de sono. Tudo uma hora para respirar.
Terrenos baldios na periferia da minh’alma ou quando eu me deito para morrer

Um depósito de lixo e quinquilharias. Para deleite de alguns, tesouros. Alguns livros e restos de cor envolto em intestinos secos e bocas desnutridas. Varejeiras maratonistas sacudiam o ar com suas asas. Apostando restos de limo numa corrida aérea desnecessária. Ali tudo era desnecessário. A existência daquele lugar não era uma afronta, uma ofensa, ocasionalmente alguém, sem mesmo deitar olhos sobre o local, jogava suas emoções usadas e os pedaços do corpo que não mais o satisfaziam. Muitos dedos, caralhos velhos, bocas murchas, dobras de pele e rugas anestesiadas. E ás vezes, alguns restos de comida, livros, camisas e poeira, muita poeira. Aquela poeira que recobre o coração depois de um tempo fechado. Aquelas tábuas cheias de pregos que se usa numa quarentena e pistolas, muitas pistolas velhas e enferrujadas. Por vezes alguém jogava algo novo, que recendia e ardia ainda. Um brilho esverdeado e límpido no meio daquela pasta leitosa. Um sentimento rejeitado. Amputado antes mesmo de ter pernas, muito semelhante a um aborto, pois o danado jazia ali num saco plástico preto sem pernas e aparência de geléia. Quantos meses teria? Dois? Três? Pouco importava. Estava agora morto. Ninguém o retiraria dali. Aquele era o lixão das coisas desimportantes, não havia reciclagem ali. Você por acaso tentaria reciclar um intestino alheio? Metros e metros de pele velha e fedorenta? Não mesmo. O conteúdo daquele lixão apodrecia e fedia ali com um suspiro para a eternidade.
E dentro dele os relógios biológicos e mecânicos atravessavam seus ponteiros e rodopiavam num balé sem coreografia. Apenas latejando os restos de tempo que ficaram presos entre seus dedos magros e curtos. Dedos de metal absorto. O tempo parecia algo esquecido ou ligeiramente diferente, ali era bolorento, cheio de veias expostas. Veias desatadas do corpo em formato de rosas esqueléticas que por uma hora rondavam sem cessar os caminhos daquela latrina. Palavras sem alma e homens perfeitos e suicidas passeavam ali, tentando morrer de tédio, tétano ou qualquer outra doença que lhe tirassem o corpo. Os homens perfeitos vasculhavam aquela latrina em busca de dor e sentimentos dispersos, caçadores de palavras sem alma, para preencher dias e dias de seus livros de anotações. Aqueles risos amarelos, aquelas excreções da lua. Numa grande feira ao ar fétido e livre os alheios se jogavam. Catando a xepa das ilusões. Que nem chegavam a ter braços, eram embriões de vesgo sonho, cuspido ainda úmido sobre o piso frio da manhã. Eram vísceras abertas na espera do abraço dos escaravelhos, da saliva dos besouros sedentos.
E ali sem aviso, alguém por vezes se jogava inteiro, boca e recheio, pistola pulsando e coração batendo, por não achar mais jeito de viver. Mas era diferente de um suicídio, não era tirar o corpo de si, mas retirar de si o estojo que guarda a chama, era apagar aos poucos, carcomido por todas aquelas coisas e não se mover. Era deixar a alma parada, dormindo sem ver que estava a apodrecer. Estava mais para assassinato premeditado. E dali não nasceriam flores. E dali os homens perfeitos não retirariam tiras. Não havia nada, há muito era só uma casca passeando num mundo de sonhos e formulários.
E dali não nasceriam flores. Um túmulo fechado no espaço de um corpo, engavetado num armário sem portas. E as varejeiras rodopiavam elétricas ensaiando arrancadas e pousos.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Anônimo nunca erra, mãe também não

Todos sabem tudo sobre você, todos poderiam escrever uma tese comportamental sobre sua pessoa. Previsível, definição clássica dos seus atos. Imutável? Conformável? Manipulável? Há várias teses sobre a sua maneira de ser. Cada pessoa que te dirige um olho, sabe tudo sobre você. Olho de cartomante, passado, presente e futuro. Todos querem te mudar, todos querem te acertar. Acercar de teorias gastas e prosaicas. Até quando uma cabeça agüenta sem que sua pistola pulse alerta e incessante? Os ouvidos viram enormes pinicos públicos, afinal todos precisam derramar suas teorias em algum lugar. Ainda faremos placas para carregar no pescoço:

“ Prazer, aterro mental. Traga sua teoria e ganhe um brinde”

Se bem, que nem precisaria de brinde, o mero prazer de destroçar uma parte sua já vale a viagem. Um mundo de impiedosas hienas à paisana. Detentoras do bem e do mal em seus livros de mil e bolorentos e não sei quantos anos. Os justos. Os corretos. As pessoas que sabem tudo sobre você e sobre mim.

As pessoas que sabem como as linhas das cabeças funcionam, de todas as cabeças, sem nunca terem tirado a bunda do sofá. Elas pararam no tempo, se revestem dos seus pesadelos, vestem a camisa dos inimigos do passado. Não percebem que suas faces mudam no espelho. Elas erguem rictos no lugar da boca. E se tivermos sorte, uma hora, de tanto falarem pelos cotovelos, joelhos e alvéolos, ficarão afônicas.

Mas elas nunca erram. E nesse presente fustigado elas ainda falam. E falam e falam. Da hora que você acorda até dentro dos seus sonhos. Elas guincham dentro da sua cabeça. Absorvendo talhos do seu tempo. Mas elas são a nata do mundo, os doutores em vida conjugal, em realidade, possuem a sabedoria de todos os monges, messias, e porque? Porque são velhas, literalmente. Os ossos puídos por tantas desilusões, as caras amassadas por tantas fraquezas regurgitadas. Mas não façamos um evangelho contra os velhos, apenas contra aqueles que se erguem em suas bengalas morais para repintar o mundo com suas têmperas podres.

E se velhice fosse realmente um sinal de sabedoria, Derci Gonçalves seria a reencarnação de Confúcio.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Elegia para um homem perfeito

Acima do bem e do mal, um pequeno super homem sem capa, by Nietsche. Descrente sobre as morais pairava, não a moral cristã ou social, essas jaziam na caixa de areia dos seus gatos. Sua própria lei de conduta, aquela que ditava as ações dos amantes superiores, dos poetas perfeitos, dos solitários ainda não sinalizados, dos perfeitos imbecis de rosto gasto na fotografia. Ele pairava com os cabelos ao vento, crente de sua sedução, de suas letras arredondadas, além do mero perdão e das convenções de amor e ódio. Sobre a sua torre de marfim, irresistível. Simplesmente o mais belo homem da terra. O mais sábio. A sua sabedoria era a mesura de seu nariz, grande ponte entre os melodramáticos mortais e sua existência suprema. Cético. Asséptico.
Emergia de seus espetáculos maravilhado. Recorde de lotação da casa. Cada vez mais requintado em suas apresentações, cada vez mais vazio. Uma estrela de ouro provida de fartas doses de estrume. Irradiava seu interior em todas as direções, disfarçando (inclusive para si) o odor de seus lábios. Havia algo de inacreditável naquele homem que se assumia perfeito. E essa sua característica era a sua falha deflagrada. Roncos de estômago seguiam-se aos seus discursos, ele buscava preencher um vazio, ás vezes com aparência exótica, noutras com dor amplificado num Marshall.
Mas o que havia nele de mais irreal era a sua facilidade em descartar os meros humanos como cascas de nozes. Ele os abria, fuçava, ficava um tempo observando-os, lambia-os e depois sem aviso cuspia sobre eles e os lançava num tabuleiro de jogos críticos. Avesso à qualquer erro. Um enxadrista com peças pulsantes. E ele via tudo, acreditava piamente nisto.
Mas por dentro o ronco era estrondoso, mais sensacionalista, quase manchete de jornal, precisava do amor e da atenção daquele platéia. Precisava deles para existir, sozinho, não era um super homem. Sozinho, era ridículo, como o mais comum dos arquivistas do estado.
Cena 02 . Int.Sala de cinema ou Roteiristas que fazem análise tem dias de fúria

Um roteirista em crise resolve fazer análise. Como sugestão de tratamento recomendam que escreva uma história sobre como ele se via e outras coisas do gênero. Um dos analistas após ler o texto recomenda que ele o filme. No dia da première várias pessoas assistem o filme em silêncio. Olhos fixos na tela. Ele sentado na última poltrona da última fila. Após a exibição os aplausos e os comentários. Ele apenas ouvindo.
- Ele fez o filme mais degradado... um homem cheio de vícios
- nossa eu o odiei em cada momento...
- se eu conhecesse alguém assim eu dava um tiro!
Perguntam ao roteirista que ficou quieto durante toda a exibição:
- É irreal uma personagem tão densa,um vilão tão "cativante", nunca vi uma platéia ficar tão feliz em ver uma personagem sumir da tela. Um primor! Uma obra-prima! Em quem você se baseou pra criar uma personagem tão escrota? Quais suas influências?
- ... Em mim, responde um roteirista amuado e em lágrimas
dizendo isso estoura os miolos com um trinta e oito na frente de uma platéia de 500 pessoas.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Acadêmicos do Almodóvar

É carnaval!
Os blocos passam nas ruelas apertadas, foliões suados e bêbados capengando ao som dos atabaques, das cuícas, dos reco-recos e da bateria como um todo. Uma hipnose. Bloco dos maltrapilhos, bloco dos sambistas, bloco dos bonecos de Olinda, blocos afros. Cadê o bloco dos cineastas? Eu adoraria instituir um bloco de diretores de fotografia! Com a ala das Roleflex, das Reflex, das Canon de números variados. O bloco dos diretores de arte, com a ala dos maquiadores, cabeleireiros, dos figurinistas, dos produtores de set, e toda essa parafernália. A ala técnica com seus fios e cabos, um carnaval de doentes quase. Uma fuga do manicômio.
Unidos da Novelle Vague? Acadêmicos do Herzog? Grêmio recreativo Unidos do Lynch? Caramba, porque carnaval fica tão estranho com maníacos por cinema? Almodóvar adoraria passear num bloco do Arouche, todos os seus personagens caricatos estão ali. Divididos em alas, por número da sandália e por ordem de regatinhas. O paraíso criativo uma vez por ano (ou todos os dias sabendo onde olhar, só não olhe muito, você pode tomar um surra de algum travesti) para roteiros excêntricos e coisas do gênero.

Unidos do tio Truffinha? Não, é um nome muito ruim para um bloco, aliás, é uma piada infame quase. Mas enfim, seria bom um bloco de cineastas, cheio de pessoas de all star furado, camisetas de filme, ou sobretudos, ou camisas xadrez ou tudo isso junto, misturado, batido e sem gelo. Percorrendo as ruas de São Paulo num trio, cantando trilhas clássicas de filmes em ritmo de carnaval..imaginou o tema do Darth Vaider em ritmo de marchinha? Excêntrico? Mas vivemos num mundo globalizado. Nada mais pode ser considerado estranho, já que tudo é possível. Podemos entrar em sintonia com o mundo todo, parece até discurso New Wave, mas de certa forma é verdade. Não dá pra compreender nem o vendedor de frutas da esquina, sei lá como funciona a cabeça do sujeito, mas sei que posso conversar com alguma garota do Paquistão que também acha interessante a evolução do cinema nigeriano. Essas pequenas impossibilidades são divertidíssimas. Essas pequenas coisas são parcialmente insensatas. Mas é daí? É carnaval! Nada funciona antes do carnaval. Nem aqui e nem em mais nenhum lugar do mundo.

Enquanto isso, um bloquinho sinistro passa pela rua Augusta. Descendo como um enxurrada que carregou tudo que estava no caminho, senhoras de camisola, velhas meretrizes, cafetões, bêbados, foliões, saudosistas, ladrões, mocinhas indefesas, cineastas em treinamento e punks de férias.
Samedi noir

Reproduzo na tristeza das minhas histórias aquela que me consome. Sinto a boca amarga, o beiço rasgado por um desejo sujo, desprovido do real sentido do desejo. Não há arrepios. Sacolejos. Pêlos eriçados. Não há nada que me aprove nas ações. Apenas ações mecânicas providas de saliva. Me entrego ao álcool como antes e mesmo tendo desmembrado o vício, me pego no círculo de novas mentiras tempestuosas.
Apenas um passatempo.
A vontade de dizer:
“ cara, é apenas um passatempo, ache o que achar, que eu sou sentimental, que criei um laço afetivo, qualquer merda, mas a verdade é que estou pouco me lixando, me sinto descontente por dentro de ter me lançado em algo tão sem sal”
Parece cruel. Mas é assim que me sinto. Apenas uma boca me orgulha. Apenas uma me desencadeia. E é aquela que eu não posso ter mais. Sim, se trata daquela letra de Ravel. Apenas ela me instiga. Todas as outras me atormentam, uso-as ou deixo que me usem apenas pela possibilidade de esquecer, de não ser vela queimando sozinha numa noite escura demais.
Me sinto sozinha. Em parte feliz, pelas pessoas que me amam, em parte triste pelas pessoas que eu amo e desaponto, que nem sempre são as mesmas. Invento mentiras para não parecer tão burlesca. Aquarianos com o meu nome tem o dom da inventividade e do adorno, pelo menos é isso que esses sites pregam em suas páginas. E nessa noite eu só queria não parecer tão imatura aos seus olhos, mas me rendi. Ergui a bandeira branca ao acaso e deixei as cenas rolarem sem gritar corta. Como sempre você paira acima do bem e do mal, um Sinatra nas minhas páginas. Fica como modelo que não quero corromper, o porque pelo qual quero me modificar. Mas permito que o álcool me devaste e fico alheia a razão. Meneando a cabeça como uma quinquilharia de beira de estrada. Fico assim na sala imaginária do passado, corroendo minhas entranhas gastas em versos e solilóquios infindáveis.
E no instante, no agora, algo me debilita, mas foi a última noite azeda. Você não merece mais minhas mentiras. Todas as pessoas que me cercam e que tem por mim algum carinho, não merecem mais essas mentiras. Cacete..eu não mereço mais. Já expurguei os demônios por duas vidas inteiras e nem cheguei a viver uma.
Minhas mãos possuem mais linhas que uma estrada, que um desenho três vezes rabiscado. E minha boca parece muita velha, num ricto se dobra. Hoje, assim como ontem, senti a degradação do meu ser em estado puro. Mas lastimar não adianta, não quero permitir que meus inimigos ponham moedas no meu chapéu. Março se ajeita nos calendários. Impossível adiar a cavalgada do meu peito por mais um ano.
Reproduzo nos olhos caídos a certeza de minhas possibilidades.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Leite, café e dois dedos de açúcar, por favor

O real significado me escapa. Heterossexual. Homossexual. Bissexual. O real sentido me escapa como em chaleira, gengibre, árvore ou cachorro. São meros fonemas unidos e articulados num rótulo. Assistindo Milk, um filme sensacional, vendo a trajetória de Harvey Milk, fiquei pensando no que eu sou. É tão fácil ser gay. Temos tudo, lugares, lojas, marketing, mas não temos alma. Na década de 70 nós não tínhamos nada, nem respeito, não que hoje tenhamos, somos tolerados, porque afinal de contas nos tornamos rentáveis. Um nicho promissor. Fica até estranho falar em nós. Não há um nós. Temos apenas rótulos dentro de rótulos,como pequenas bonecas russas, e no final dentro da última boneca minúscula, apenas o vazio.
As palavras brotam assim sem alma, e me sinto triste demais. Vejo que nas bocas que beijo, nos lugares que vou há sempre o mesmo ego circulante e bufante, mas além disso, e até mesmo em mim, não há nada. Conjunto vazio. Meses esperando a parada gay, apenas para desfilar. Mostrar que existimos e como somos engraçados, um zôo ambulante. Mas onde está o real sentido disso? Milk me diz que há um sentido. Aretha grita em seus lindos pulmões: Respect! Naquele único dia saímos do armário e escandalizamos as ruas. E depois dali? Eu volto pro armário e fico lá sem fazer nenhum barulho. É tão ridículo. É tão pastoral. Olho para as coisas que me possuem (elas adquiriram um certo senso de realidade muito melhor do que o meu) e não sinto nada. Ficam mudas. As bocas que eu beijo se desfazem em meros números de telefone que esqueço dez minutos depois. Realejo com músicas velhas. Eu quero ouvir o trovador Dylan. Fico assim enraivecida. Andando do banheiro ao quarto. Da cozinha ao jardim. Se eu fumasse já teria bordado um tapete de cinzas. Já teria incendiado metade da casa, mas só minha cabeça pega fogo no momento. A existência gay, negra, amarela, azul com bolinhas só é possível com luta. Não digo de fuzis e ônibus queimados, mas de sempre olhar à frente, sem medo que lhe cuspam na cara. Eu ando com um lenço reserva. Caralho. Me torno uma palavra indivisível de seu caráter cômico. Um rotulo, querendo adiar a vida por mais vinte anos, até o caixão. Numa marcha fúnebre cheia de diplomas, acessórios frios para mentes esquálidas. A quem eu quero impressionar? A mim mesmo, só pode, estou tentando me convencer que nasci num mundo frouxo e tenho nervos de aço. Praticamente o Rocky Balboa. Mas eu não tenho a boca torta. Nem o olho caído. Só minha moral anda caída, a moral social. Esse link com o mundo anda meio defeituoso. A página expirou. E não adianta atualizar. Não vai mais. Página inválida. Não quero dizer que “Oh, nossa me revolucionei” mas já deu o que tinha que dar essa cara no espelho. Me concentro, mas não me vejo. Os pincéis não dizem nada sobre mim, nem meus livros. Esse tipo de crise deveria bater aos trinta e não aos vinte e quatro. Uma ressaca moral das verdades escondidas de ontem a noite. Me deprimi. Beber, mentir, seduzir, eu perdi o tesão pela vida simplesmente porque eu não sei o que eu sou. Homossexual é só uma palavra
e
eu quero saber o que há por trás das palavras. Dos rótulos clandestinos, das mesas de bar. Acho que preciso de um psicólogo, psiquiatra, psicanalista, médium, mãe de santo, cartas de tarô... Será que eu encontro alguma “madame faz tudo” num desses folhetos de rua? Porque homossexual, com nome, endereço, data de aniversário, diploma e um monte de balangandãs é só uma definição de ficha, pra gente não se perder no mar de gente todas as manhãs. Mas isso não garante um rosto no espelho que você possa se orgulhar. Nem mesmo garante um rosto pra você se lembrar. A vida é mesmo muito ordinária quando resolve sacudir as gavetas.