quinta-feira, 12 de março de 2009

Terrenos baldios na periferia da minh’alma ou quando eu me deito para morrer

Um depósito de lixo e quinquilharias. Para deleite de alguns, tesouros. Alguns livros e restos de cor envolto em intestinos secos e bocas desnutridas. Varejeiras maratonistas sacudiam o ar com suas asas. Apostando restos de limo numa corrida aérea desnecessária. Ali tudo era desnecessário. A existência daquele lugar não era uma afronta, uma ofensa, ocasionalmente alguém, sem mesmo deitar olhos sobre o local, jogava suas emoções usadas e os pedaços do corpo que não mais o satisfaziam. Muitos dedos, caralhos velhos, bocas murchas, dobras de pele e rugas anestesiadas. E ás vezes, alguns restos de comida, livros, camisas e poeira, muita poeira. Aquela poeira que recobre o coração depois de um tempo fechado. Aquelas tábuas cheias de pregos que se usa numa quarentena e pistolas, muitas pistolas velhas e enferrujadas. Por vezes alguém jogava algo novo, que recendia e ardia ainda. Um brilho esverdeado e límpido no meio daquela pasta leitosa. Um sentimento rejeitado. Amputado antes mesmo de ter pernas, muito semelhante a um aborto, pois o danado jazia ali num saco plástico preto sem pernas e aparência de geléia. Quantos meses teria? Dois? Três? Pouco importava. Estava agora morto. Ninguém o retiraria dali. Aquele era o lixão das coisas desimportantes, não havia reciclagem ali. Você por acaso tentaria reciclar um intestino alheio? Metros e metros de pele velha e fedorenta? Não mesmo. O conteúdo daquele lixão apodrecia e fedia ali com um suspiro para a eternidade.
E dentro dele os relógios biológicos e mecânicos atravessavam seus ponteiros e rodopiavam num balé sem coreografia. Apenas latejando os restos de tempo que ficaram presos entre seus dedos magros e curtos. Dedos de metal absorto. O tempo parecia algo esquecido ou ligeiramente diferente, ali era bolorento, cheio de veias expostas. Veias desatadas do corpo em formato de rosas esqueléticas que por uma hora rondavam sem cessar os caminhos daquela latrina. Palavras sem alma e homens perfeitos e suicidas passeavam ali, tentando morrer de tédio, tétano ou qualquer outra doença que lhe tirassem o corpo. Os homens perfeitos vasculhavam aquela latrina em busca de dor e sentimentos dispersos, caçadores de palavras sem alma, para preencher dias e dias de seus livros de anotações. Aqueles risos amarelos, aquelas excreções da lua. Numa grande feira ao ar fétido e livre os alheios se jogavam. Catando a xepa das ilusões. Que nem chegavam a ter braços, eram embriões de vesgo sonho, cuspido ainda úmido sobre o piso frio da manhã. Eram vísceras abertas na espera do abraço dos escaravelhos, da saliva dos besouros sedentos.
E ali sem aviso, alguém por vezes se jogava inteiro, boca e recheio, pistola pulsando e coração batendo, por não achar mais jeito de viver. Mas era diferente de um suicídio, não era tirar o corpo de si, mas retirar de si o estojo que guarda a chama, era apagar aos poucos, carcomido por todas aquelas coisas e não se mover. Era deixar a alma parada, dormindo sem ver que estava a apodrecer. Estava mais para assassinato premeditado. E dali não nasceriam flores. E dali os homens perfeitos não retirariam tiras. Não havia nada, há muito era só uma casca passeando num mundo de sonhos e formulários.
E dali não nasceriam flores. Um túmulo fechado no espaço de um corpo, engavetado num armário sem portas. E as varejeiras rodopiavam elétricas ensaiando arrancadas e pousos.

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