quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Desperto

Despertei de um sonho chuvoso, mas não era sonho, realmente chovia e o frio embaçava as janelas. Deixando nelas fragmentos de respiro. E fui tomada de assalto por um pico de alegria direto na veia, sem meio termo. No frio me resolvo gente, me resolvo poema. Acordei com letras na ponta da língua, formigando. Formigando querendo sair pelas pontas dos meus dedos. E todas eram leves apesar do meu estilo acre. Eram todas leves e eram todas você. E elas tinham a beleza que você nunca admite e a paixão que eu sempre escondo. Que eu trituro dentro do meu copo de água toda manhã. Mas isso com certeza não me torna uma nuvem cinza, muito pelo contrário, me torna acesa. Me deixa viva. Porque a razão mas minhas emoções é um turbilhão de palavras e sentimentos desconexos. E pra isso existem apenas dois portos, duas vasilhas que podem me conter. Podem deter toda essa convulsão pesada e ao mesmo tempo bela. Que podem escutar um pouco mais dentro do meu silêncio entretido em amenidades. O amor é efêmero, a razão simplesmente rabiscada e eu não tenho lá muito equilibrio. Fica tudo dentro de um resquício de poema. Hoje a cidade acordou fria e eu por contraponto com vaga lumes queimando nos olhos. A felicidade é um brinquedo muiro frágil.
Sunset Boulevard again

Recorro ao cinismo. Corro na direção de um automóvel. Me lanço nos braços de um assassino de pulôver laranja. Me denigro com chá de gengibre feito numa chaleira de aço. Exagero o zelo dos meus entes. Deixo tudo dentro do meu organismo, estático. Aumento as doses de morfina pra aliviar a dor no peito. Inchaço. Faço resenhas para livros que nunca vou escrever. Alguma coisa como “ Literatura marginal clariciana introspectiva pra matar de tédio o coração mais molenga e a senhora leitura de livros Júlia e promover a melancolia massiva e histérica”. Coisas que nasceram engessadas por decreto dentro do meu corpo e que tento arrancar como forma de me esvair. Como um pensamento. Um gota de suor. Um susto. Um surto. Uma nota Dó.
Deixo subentendido certezas textos poemas dilemas edemas e silêncios psicomotorizados. Crio palavras ao acaso, na vã tentativa de me ludibriar, me desviar do fracasso. Imponho no rosto cravos e clavas, mostras de sinceridade e força, mas quão vago e saturado é o meu silêncio. Quão fraco é o meu progresso. E tão simples e entrelaçadas são as minhas sensações. Escrevo linhas e mais linhas deixando rastros de pão. Pontos,virgulas e traços. Procurando uma verdade que sei não existir. A incapacidade de dar o braço a torcer, saber perder ainda vai me condenar á uma loucura a la Norma Desmond.
Na sombra da Lua um riso escarlate de escárnio surgiu

A confiança pode matar um coração que pena pela delicadeza. Um dejá vu. Parece que alguém já escreveu essa cena. E você sabe o final desse filme, porque todos já viram esse filme na sessão da tarde. Mas esse personagem será o seu? Foi feito pra você? Sofrendo por antecedência pela certeza do ato. Pelo conhecimento dos personagens. Pela certeza do seu próprio corpo e pelas linhas já cansadas da sua mente. Você sabe todas as cenas dessa história. E o melhor seria pular a página e abrir um outro livro. Fincar o pé no imprevisível. Podar o texto dos excessos. Fazer um pequeno comércio e trocar algumas coisas de lugar. Algumas coisas que mofam, que paraliticas não tem onde morrer e fincam pragas dentro do peito, até o momento em que cansado e desesperado o ódio explode dentro da corrente sanguínea. Quando sem perceber as pessoas ficaram distantes e pequenas demais. Parece não haver solução para o soluço que incontido esmurra as paredes da goela. Para o choro que quer arrebentar as córneas. Não há como separar os sentimentos dessa cena, desse conto. Não há como pontuar. Dissimular a sensação viscosa da idiotice batendo na porta da sala com um riso grotesco e cínico pregado na cara. A confiança em algumas pessoas retorna ao movimento amedrontado do útero. A procura de um porto seguro, mas na realidade inexistente. Porque toda e qualquer sensação, pessoa ou sonho vão te decepcionar em algum momento. É um movimento compulsório. Uma maré que arrasta tudo. Draga. Desenterra antigos dissabores e deixa a boca acre pela amanhã, com resquícios de uma noite desprovida de sonhos. Um armário detonado. Gavetas que explodem madrugada adentro criando rusgas, vincos e pústulas antecedentes. Porque existe um faro animal para o perigo. Um gosto absurdo pela dor e acima de tudo uma vista que alcança mais que a capa benevolente da espécie humana. A aparência desprezível dos desabafos sem ouvidos. A claridade da manhã que se aproxima apodrecida, o brinde divergente com a solidão e o desejo arbitrário de ser livre, mesmo não sendo preso a nada.
P.D.A (PEIXES DEPRIMIDOS ANÔNIMOS)

Eis-me aqui me debatendo dentro de um aquário. Peixe viscoso sem nada melhor pra fazer. Esperando a hora da morte. Me debatendo de cara nas laterais desse aquário. Colhendo um pouco de ar. Um pouco de comida. Quando há a lembrança da minha existência. Quando eu me lembro da minha existência. Quando não me perco nas reverberações dos meus sonhos inutilizados nas paredes desse aquário. Quando não entre em conflito com a necessidade dos meus empenhos e a delicadeza dos meus desejos. Quando não me enrosco em algas pra sufocar. Eis-me aqui,me debatendo pútrida nas paredes desse aquário. Posso acrescer manchas nessa água salgada, mas não adianta de nada. Ninguém daria crédito ao suicídio de um peixe.
Dance floor

Pela primeira vez em muito tempo eu estou feliz. Realmente feliz.

Foram suas palavras debaixo da chuva que caia e molhava ainda mais seu corpo. Que antes se recobria de uma camada brilhante de suor e poeira. Descia a rua contagiada pelo movimento rítmico da música. Naquele movimento nada mais importava. Queria ser livre. Sentir o corpo fora da amarra. Queria por pra fora toda a frustração e toda dor. O chão respingava de suor e chuva. Sentiu a camiseta se fundir ao corpo. O ritmo dos quadris pareciam mover a terra em círculos máximos e espaçados. Tinha as mãos cheias de ferrugem se dilatava de acordo com o movimento. A cada passo sentia-se mais fora de si. E sentia-se realmente feliz por isso. Era extremamente claustrofóbico morar dentro de si o tempo todo. A principio resistiu. Discutiu. Ouviu todos os argumentos. Mas não havia mais jeito. Havia se infiltrado em suas veias como uma droga. A redenção parecia próxima e quase sufocante. Aí veio a chuva. E enquanto todas as superficialidades e acessórios se escondiam nos bolsos, toldos e guarda-chuvas, ela dançou a noite toda debaixo de uma chuva torrencial. Sentindo a roupa colada em seu corpo. Como se estivesse nua. Declaradamente avulsa. Sem senso. Apenas o movimento. E não era sexual. E não era delicado. Era visceral. Como se algo de selvagem quisesse escapar de seu corpo. Como se algo de anormal quisesse pousar na sua vista. Gritou ainda no meio de um bilhão de corpos avulsos que ora se compactavam numa massa ondulante ora se infiltravam nos vãos do calçamento. Gritou para que todos os pensamentos tensos saíssem de si de uma vez por todas. Estava cansada de museus. De fracassos. De visitas. Mausoléus que queriam habitar seus lábios mais uma vez com a brevidade de um por do sol. De um gozo. De um escarro. Deixou desprender-se de si junto com o suor todo o amor e toda a fissura das suas torturas mentais. Enfiou o orgulho numa caixa preta e o deixou colado ao peito. Dentro da pistola. Pulsando. Mais uma vez pulsando. Celebrando em silêncio algo que se transformava. Era um ato de despedida. Seu nariz sangrou. O sangue escorreu. A tensão aumentou. O corpo pendia no asfalto. Suave. Leve. Risonho. E acudido mais uma vez por fantasmas agradeceu a gentileza e o cuidado, mas estava irresoluta em não dar ouvidos ao passado. Que lhe abanava o rosto e lhe botava algodões no nariz. Agradeceu com um sorriso e voltou para a pista.

Eu não quero mais.

Afastou-se na rua molhada. Soltando os algodões sangrentos na lixeira, dissolvido sangue, rosáceo no seio do asfalto. Voltou a música. E o seu corpo ditou a penitência por anos de obscuridade.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Espaço transitório parte II

E eu disse mais uma vez. Mesmo quando não há chance. Mesmo quando não há nada. É, é a vida. Quem sabe algum dia em algum lugar que não esse. Quando eu nascer de novo, porque defitivamente não dá. Só eu não vi o fim do filme. Dormi.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Espaços transitórios

Escreveu duas linhas sobre uma mesa branca. Deixou a impressão de seus dedos leves sobre um pedaço morto de madeira. Assim um pedaço da sua alma ficou pregado a tudo que tocava. Como se desgastasse no simples ato de andar um pedaço dos pensamentos até sumir, até assumir a exaustão como linha de fuga. E o amor como moeda de troca, mas não um amor tenso, quente, movimentado, mas um amor gélido cheio de presenças estranhas e ausências. Apenas uma passagem pela epiderme. Muito, muito distante do sonho que havia dentro das suas retinas. Apenas um espaço entre as suas várias e intensas mortes por dia.
Espaços contínuos

Dentro de vasos. Dentro de portas. Através de Janelas. Grades impostas. Através de palavras. De vidros escuros. De óculos. De posturas. Muros. Apenas algumas coisas que deixam espaço entre os corpos. Além do silêncio impróprio.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Reflexões acerca de um filme
[Camile Claudel de Bruno Nuytten]

Presa de suas próprias paixões e aspirações. Como uma Claudel encarcerada dentro de si gritando e aspergindo inseguranças pelos poros como pólen de uma desgraça anunciada. Percebeu a intensidade de suas sensações quando não reteve na palma da mão a intensidade de qualquer acontecimento. Sentiu-se menor. E ainda menos que antes. Sentiu-se assim embriagada de uma volúpia e uma desnecessária loucura irresponsável. Ardeu em febre por dias seguidos. Aquela febre que regurgita a pele. O calor parece abraçar todo o espaço e a noite se intercala com o vazio. E o silêncio se torna diferente ao ser respirado. Tragado até a última possibilidade. Intensificado. Dopado. Armado. Ergueu a ponta dos dedos pra tocar um pedaço do próprio rosto, sentiu-se sombria. Na rua que naquela hora não abrigava nada alguém pode ter a mesma sensação. Será? Alguém terá essa sensação nessa mesma hora ouvindo a mesma música sentado numa cadeira parecida? A rua estará cheia de Claudels, Farneses e Fridas? Pequenas obsessões embaladas por ritmos cardíacos intensos. Compassados. Relógios sentimentais apostando tudo numa única esquina, numa só página de roteiro.
Ausência de si enquanto a noite martelou um novo ferimento

Ele sentia uma ausência enorme em relação a tudo. Pessoas. Carros. Casa. Papéis. Palavras. Linhas. Parecia distanciado de tudo naquele dia,seus olhos ainda um pouco inchados de um sono nauseado. Um sono ausente de sonhos, recheado apenas de implicações práticas e preocupações lógicas. Havia dormido fetal, inseguro, destrinchado. Mentalmente anestesiado. As noites passavam sem ação. Sem surpresa. E ele se via presa de um medo irracional de morrer sozinho aquela noite.
Desejou telefonar, mandar mensagens a alguns amigos e amantes recentes, talvez medir a atenção que receberia. Mas não teve coragem, julgou muito baixo. Mas se sentiu imensamente só. Jogado numa ponte de concreto a 200 m de altura, sem ninguém que pudesse ouvi-lo gritar. Era assim que se sentia. E embora não almejasse pular, sentia uma necessidade intensa de soterrar a retina chão abaixo. Escada abaixo. Senso abaixo. Estava errado? Sentia uma ausência tão grande de si, que nem mesmo conseguia ficar triste por muito tempo, mas mudo. Eternamente mudo. Apático. Esquecido num canto da sala de jantar. Lembrado apenas quando você precisa deslocar um móvel de lugar ou simplesmente passar. Uma cadeira. Um jarro. Uma flor de plástico. Dramático? Essencialmente dramático.
Apenas deitou-se sobre uma labareda de certeza e não se sentiu aquecido. Sentiu-se mais anestesiado. Sem força de cuspir um sarcasmo. Escreveu um diário nas páginas da lista telefônica aquela noite. Mandou tudo as favas. Chances. Incertezas. Dores. Anseios. Só não conseguiu se livrar daquela mania de pensar demais.

Só não conseguiu se livrar daquela ausência e daquela sensação de enterro que florescia nos seus lábios.
Obscenos pensamentos da garota do apartamento 34

Eu fiquei com vontade de escrever mais uma página desse diário imaginário para ouvintes surdos e cegos e imaginariamente presentes. Resolvi escrever o seu nome mais uma vez pra ver se havia retornado alguma infecção e olha que surpresa: seu nome ainda é lindo na minha boca, não tão lascivo nem acido nem batido nem misturado mais ainda é bonito preso com um alfinete nos meus lábios. Existe algo de ingênuo nessa minha tarefa de recolher memórias e ficar juntando pedaços pra bater uma punheta (embora esse não seja o termo exato para a ação soa mais comum e até mais bonito). Gosto da idéia de me tocar pensando em você, o adormecer fica mais doce e mais liso, escorregadio como uma música debaixo do chuveiro. Ou um pesadelo que se desvanece.
Alguma coisa ficou presa no bolso da minha calça ou na alça do meu coração, eu não quero ser Claudel nem Farnese. Tenho pânico de partir minha loucura em doses tão densas, ter uma overdose com a minha sensata estrutura sentimental complexa e relapsa. Funciono como um grande arquivo de sensações imaginadas, como uma paranóia constante, um momento drogado que permanece imaculado. Uma viagem dentro da veia da noite. Alguma coisa como um baixo transtornado batendo dentro da caixa torácica. Doendo. Machucando. Ardendo. Fazendo inferno dentro das linhas do corpo. Eu fico assim dentro de mim: peixe se debatendo dentro de um aquário cheio demais. Fico me espremendo dentro das minhas inquietações, mas permaneço bem quieta, bem quieta, escondida no fundo de tudo esperando alguém me encontrar ou eu me cansar.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Dois lances de escada

Desceu as escadas apressadamente. Sentiu a gola da camisa mais apertada que de costume. Arrastou-se para fora do elevador com ar pesado. Sentiu a vista tremula e a pele em fogo. Tinhas as pernas lentas e a veia em brasas. Sentiu a roupa mais justa do que realmente estava. Passou a mão no bolso oito vezes num minuto: tinha a certeza que o celular tocava quando este estava mudo. Passou pela portaria sem dizer bom dia. Passou pelo vendedor de balas sem dizer bom dia. Atravessou a avenida sem olhar para os lados. Estendeu a mão fria sobre o balcão da cafeteria num gesto de cansaço. Não havia feito nada era o começo do dia. Afrouxou a camisa que parecia sufocar. Pediu um café com a voz mais baixa que uma confissão. Ouviu mais ruídos que o normal. Sentia-se terminantemente mal. O café desceu amargo e queimante. A mão subiu a boca num soluço. O olho ardeu num instante. Sentia-se revirar brusco. Olhou alheio para os rostos no reflexo do vidro. Disformes pontos e linhas que não se encontravam. Debruçou-se sobre o balcão e permaneceu suado, mudo e estático.

Desceu as escadas imensas antes que ele acordasse num susto. As mãos ainda úmidas no corrimão. Esqueceu-se do elevador. Queria espaço pra respirar. A mão sentia tremula toda a forma que era reta. Mas havia uma curva em sua boca semelhante a um riso. Removeu do dedo o anel que ainda estrangulava. Tirou com um lenço um resto de maquiagem que pendia do rosto solto. Saltou a rua e ganhou espaço. Dando bom dia a todos os passantes e passados. Perdeu-se na rua invertebrada, dando curvas na espinha quando espichava. Comprou um sorvete eram sete da manhã. Passas rum e avelã.

Ele rodopiou parado. Maldita. Vadia. Filha da puta. Ela havia levado sua última seringa...a parte mais móvel do seu coração.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Uma letra no alfabeto

E eu queria passar todas as minhas noites em claro pra conseguir esquecer os erros que me perseguem ou que antes eu persigo. Na verdade a única coisa que sei é que me tornei uma pessoa mais triste depois de perder você. Menos sorridente, menos transparente, menos espontânea. Você era a medida certa do meu riso, da minha histeria, da minha mania de gostar de cinema. Você era o roteiro que eu ia fotografar. A valsa que eu não soube dançar, o passo que eu quis apressar numa noite de quinta. Eu te ganhei de presente, mas não soube aproveitar e agora que já não há tempo eu queria voltar no tempo e apenas ouvir o seu boa noite baixinho. Ver o seu riso delicado do outro lado da pilastra, gastar papel com especulações, gastar dinheiro com pequenos agrados. E eu só queria não sentir hoje aquele frio que eu sinto quando você passa a minha volta invisível. Quando você fala e se move perfumada e não me vê, antes desvia o olho da minha linha, dessa parede que eu me torno, presa do desejo que ainda tenho em mim. O seu perfume fica invadindo o ar, a epiderme e deixa meu pensamento mais leve, mas logo ele desaba quando ouço o som da sua moto rodando longe. Eu não me atrevo a martelar de novo nossa canção, existem tantas pessoas melhores pra você se render...e lógico que não espero que haja uma segunda chance. Não com você.
Recomendações para um espelho quebrado

Não me peça para responder perguntas complicadas sobre mim, além da minha cor favorita, todo o resto restringe-se a um grande mistério que eu não sei desvendar. Eu vivo de sonho. Todas as irrealidades me pertencem. Fora disso, não faço idéia do mundo. Além das imagens que ponho nele. Não me peça pra escrever relatórios ou fazer qualquer outra coisa muito concreta ou linear. Desses dedos, dessa boca nada muito obrigatório consegue surgir. Parece desprezo. Desleixo. Disparate. Mas esse sistema só funciona quando há chuva. Condição básica pra toda tristeza e toda calmaria.

Eu só sei ser feliz longe de qualquer coisa que tenha raiz.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Pequeno manual das chuvas internas

Gosto do frio. Quando a pele se sente real. Gosto da experiência do frio no lábio da epiderme. Nunca mais recebi mensagens de boa noite anônimas. Gosto da obsessão. Que inflama os objetos. Dá vida aos defeitos. Gosto do martírio de ouvir trezentos e sessenta e cinco vezes a mesma música noite adentro. E eu nunca mais ouvi o silêncio do mesmo jeito quando a porta se fechou atrás de mim. E nunca mais eu ouvi o silêncio do mesmo jeito, nem me ouvi. A pele fria carregada de sentires. A pele fria carregada de sonhos sem teto. O frio que adormece a boca, o fio de felicidade que escorre da boca. O limite entre o discernimento e a loucura. A pequena gota de lucidez no meio de tantas folhas de papel. O eu tenho saudades ecoando na boca da noite babada entre dentes e solos de baixo. Uma infelicidade corrosiva e lírica alardeando, bombardeando todas as reticências. Fica assim meio ausência. O frio na pele na calada da noite enregelando as palavras dentro da boca, que com fúria buscam saída, rasgando a pele da boca com dor, causando dor, sentindo dor. Mesmo sem sentir nada.
Gosto de coisa gelada amortecendo a língua. Música triste penetrando os ouvidos dentro de um silêncio que não se pode prever. Algo além de uma câmera de cinema rodando imagens desconexas numa manhã de chuva, na busca do quadro perfeito para um enxame de sensações. A pele que arrepia. O vento doloroso. E a vontade de permanecer debaixo do cobertor. Do útero. Onde nada pode mover. Onde nada pode repor. Ou sumir.
Os excessos de alegria arrombando a boca em sorrisos lixeiros. O gosto amargo da bebida pela manhã. É segunda ainda. E eu gosto do frio, a experiência do frio me faz sentir viva. Mesmo quando nada mais faz. Elaboro discursos sobre a crueldade das intenções que não tenho, não sinto, das coisas que não faço. Redijo um manual inteiro das minhas intempéries. Das minhas sensações de frio, dos estágios da epiderme eriçada. Da doença mal consolada na boca do corpo. Da boca. Do corpo. Da alma. Do gosto.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Todas as noites do ano
[pequeno discurso sobre um roteiro]

Todas as noites do ano, passaram incolumes, todas as noites do ano em silêncio. E eu resolvi escutar todas a minha coleção de músicas tristes na esperança de te esquecer. E eu resolvi provar todas as corrosões, tentando perder a boca, a saliva e a graça. Era um conto escondido no meio do disfarce. Era um silêncio de jeans e camiseta branca, James Dean revoltado, rolando de ponta a ponta. Todas as noites do ano passaram esfumaçadas até eu perceber que não havia perdido nada além dos meus segredos menos intímos. Eu não havia saído. E apenas isso já foi um desgaste. Todas as noites do ano agora, passam ao som de Chat Baker. A meia luz. Fazendo estrelas num céu escuro e silencioso. Nada além de uma calmaria. Vão se passar assim todas as noites do ano?

terça-feira, 8 de setembro de 2009

No momento deixo a brisa ir pra longe
deixo espaço vago
talvez preencher com algum recado
talvez deixar mais espaço
pra corrosão da boca
legado
de histórias roucas
que acabaram por me domar.
No momento
não há muita coisa
além da sombra
do espaço que respira
sem pressa de se findar
Depois das onze o corpo sentiu-se absorto

Talvez devesse ter sentido algo. Talvez. Mas o fato é que apenas se embriagou, riu e contou piadas das mais diversas. Agradável? Tentou. E acordou pela manhã com o gosto nauseante da cevada e uma chuva intensa desabando pelas beiradas da casa. Sentiu-se um pouco fraco. Até mesmo um tanto grosso. Aquela tentativa de ser agradável, mesmo que tenha surtido o efeito necessário, foi ainda assim impensada, um ato inconsciente e um jeito de ter certeza que o seu passado era apenas um passado. E por mais que quisesse em alguns minutos satisfazer sua nostalgia, sentia que não havia porque, afinal nem sentia. Dentro de seu peito nada batia, nem ressentia, mesmo quando xingava não sentia. Mesmo quando chorava não sentia. Estava novamente esvaziado de coisas humanas. De sensações humanas. Sentia-se meio elétrico, movido a algo que não podia ser expresso em beijos ou abraços, apenas por palavras capazes de derreter uma parte encoberta do céu. Apenas por palavras. Era incapaz de prever o tempo, mas sabia que independente disso, dentro de si choveria. Tanto quanto agora o céu desaba sobre todas as estruturas citadinas, sobre todas as esperanças corrediças, os silêncios resolutos. Talvez devesse ter sentido algo...

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Duas chuvas ocasionais em momentos distintos do tempo

Amor, sente o cheiro da chuva, ainda não veio eu sei, mas o vento trás o cheiro típico da chuva grossa. Que vai nos retirar todo o peso. Todas as coisas que eu nunca disse nessa hora ficarão inaudíveis. E não fará muita diferença porque você não ouvirá, mas pelo menos terei tirado esse excesso da minha boca. Essa coisa gosmenta que fica pesando e dando voltas, circulares náuseas. Meu bem, eu que já te amei tanto, eu que já me acostumei em não ter, fico às vezes a beira do abismo, quero abraçar o mundo, mas tenho braços curtos, quero fazer de tudo, mas não consigo o menor ato de coragem. O que eu fiz da minha face no espelho? Eu concerto ou estrago pra depois alguém remendar. Alguém se apropriar das rachaduras ou dos enfeites. Eu faço do amor um remédio contínuo pra minha tristeza, amor que nunca tenho sempre almejo, mas finjo que não quero. Essa coisa de chuva mesmo, que vem dando o tom e a intenção, mas se nega a admitir que é trovoada. Quando o céu se põe cinza querida eu fico escrevendo cartas pra você, pra todos os seus nomes, pra todas as suas formas, que eu já não sei diferenciar. Fico velho, mesmo sendo novo, fico torto. Fico envolto numa capa. Membrana de riscos calculados. Porque eu mentiria pra você? Porque eu me declararia de novo e de novo e de novo? Pelo simples hábito da submissão. Por estar vazio meu coração e mesmo agora que não descobri ainda aquilo que me move fico alheia, fico cheia de uma anestesia, de uma fragilidade que era toda sua. Fico assim nas condições ideais para uma inundação, para uma bola de demolição. Eu já me despi. Só espero que a chuva venha pra me levar. Que a intensidade dos meus desejos não me consuma até a exaustão. Que a lascívia que vive em mim não resulte numa solidão incomunicável. Consegue entender o meu recado? Existe uma incompletude muito grande nos meus braços, fica um vácuo, uma coisa cheia de cerimônia. Uma coisa estranha que não se aquieta. E eu só quero que os meus poemas não fiquem vazios de mim. Amor, se eu ficar quieta, se eu não cumprir os prazos, não me admoeste, não me cale a boca com um beijo. Fique em silêncio e feche a porta quando sair. Eu não sou exatamente o que planejo. Nem o que digo. Nem o que penso. Eu não sei ser, me entende? Eu não sei ser assim fácil, tranqüila, límpida. Eu fico no lodo, eu sou feita disso, dessa mistura rançosa de bolor, amor e ódio. Desse cheiro de bebida pela manhã, desses vícios e desses erros. Amor, não me jogue num carro avenida abaixo, não me deixe na madrugada sem relógio. Me dê um passatempo enquanto a chuva não vem. Me venda um desejo, um sorriso, uma mentira. Me venda qualquer coisa sua. Enquanto a chuva não vem você não consegue me ver. Mas os raios e o cheiro e o cinza do céu já se fazem presentes na sua janela e dentro de mim. Tudo escurece e não há mais como evitar eu me perco entre silêncios e ribombos. Fico entre a névoa e a escravidão dos meus anseios. Me enterre depois da chuva, jogue flores secas sobre a minha sepultura, entre minhas vértebras ainda resistirá alguma candura que eu não soube usar em vida. É trágico, é lascivo, mas é assim que as coisas acontecem no meu interior, quando meus dedos tocam suas partes e ficam inertes em algum pingo de suor. Amor, fica sem chance a nossa história. Eu sou chuva fina e grossa, não sei chegar sem trazer algo de monótono e que ao mesmo tempo é explosivo e aterrador. Mas eu, eu não mudo vidas, eu não causo os amores dos seus sonhos nem os sonhos dos seus filmes,eu causo isso aí que você não sabe que sente, que só sabe quando eu já fui embora. Quando eu já não sei. Quando vejo que atrás de mim daqueles cacos cavoucou-se uma nova primavera e eu não vou aproveitá-la. Eu sou um jardineiro, eu podo, cuido, semeio e rego, mas nunca me deito sob o sol. Eu nunca descanso das minhas trevas eu fico luzindo, fico ferindo meus braços e pernas pra tentar ficar no mesmo lugar, mas a minha boca persegue um indício de lugar. Lugar este que na teoria seria minha casa, minha concha, mas que não existe, além das grades dessas gaiolas. Minhas palavras são longas, tensas, insinceras e impotentes e você não pode ouvi-las porque a chuva chegou antes de mim, e carregou pra distância qualquer entendimento. Assim, sem aviso, negra e lenta, cai sobre a cidade uma mistura de silêncios, assoares de narizes e lamentos. E eu sei da inutilidade da minha nudez nesse momento. Já que nem mesmo a chuva pode me apagar de mim.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

C’est tu mon poisson doré

Se houvesse alguém pela qual eu colocaria as mãos no fogo, esse alguém seria você. De todas as pessoas que conheci e amei, só você ainda me surpreende, me entende, me acusa e me faz farra. É a única que quero proteger mesmo sabendo que não é necessário. Mesmo que você cuspa na minha cerveja e eu na sua numa bebedeira. São apenas fluidos corporais, coisas que já dividimos na dor e no prazer. Quando chorei na sua partida, quando gozei no seu corpo sedento. Quando rimos até a hora descansar num lado da cama. Se houvesse alguém que eu poderia confiar um segredo seria você. Se houvesse alguém pela qual eu faria todo o esforço sem querer retorno seria você. É até estranho pensar em todas as bobagens que falamos e fazemos quando juntas, duas crianças mongolóides com assuntos intercalados no mesmo momento, do lixo ao luxo em um segundo ainda é a nossa frase em qualquer estação. Uma parte da minha alegria reservo em saber que você está bem, agora com outro alguém, mas já se passaram tantos “alguéns” por você e por mim que tempo não faz tanta diferença assim. Sempre me perco em romances fadados ao fracasso, gosto do sabor do teatro, da angustia do amor que não se desenrola. Uso essa paleta de recortes e sensações pra moldar os meus trabalhos. Mas você sabe que eu não nasci pra ser de uma pessoa só, por mais que no fundo eu queira, a simples idéia da rotina me entristece e me faz ser um zero a esquerda. Prefiro saborear e rir dos meus erros, ter apenas cenas desconexas no corpo do que um roteiro inteiro previsível e morto. Gosto quando os molotoves estouram na barriga. Do amargo das bebidas pela manhã. De não ter tempo. De estourar prazos. Gosto de ser incondicional quando me convém. E o fato é que eu te amo incondicionalmente em qualquer estação. Coisa meio Rivera e Frida Kahlo. Mesmo que eu não te ame mais do mesmo jeito. Mesmo que eu já não queira domar seu corpo e você não discuta mais os meus defeitos. E sabe o que mais gosto na nossa história? As reviravoltas, as indecências e o conforto. Por mais que eu faça cena, você controla a luz, sabe que é assim que eu lido com tudo, imersa em confusão e em pequenas mentirinhas auto sustentáveis pra fazer uma tela mais bonita. Síndrome de artista. Porque eu posso te falar sobre qualquer coisa pessoal ou extraterrena. E às vezes você não precisa dizer nada, porque eu conheço um pouco do movimento das suas sobrancelhas. Afinal ninguém conhece ninguém direito. E é isso que faz toda relação humana uma delícia: os mistérios.

E mesmo que ninguém entenda os nossos xingamentos e risadas na mesa do bar você sabe que ainda é o peixe dourado no meu aquário. Porque o nosso passado não nos agride, antes nos subverte em novas manhãs para que possamos amar novas pessoas e ainda assim nos mantermos a salvo do tempo.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Quando a solidão chegou em casa

Lenta e dolorosa se arrastou pela sala a solidão. Em passos delicados, andava sobre fios prateados de saliva e suor que se entrelaçavam pelos móveis, em taciturnas pontes cristalinas. Deixou que seu paletó caísse por sobre a cadeira de cor tabaco, pesada e austera como tudo que a cercava. Porque apesar de ser mulher a solidão por vezes era homem e por vezes era leve e por vezes ria a toa. Mesmo no remanso da morte ela ria solta sem abrir a boca. Sem mover o músculo. Tinha o dom de mover para o passado até mesmo o machucado instantâneo do joelho batido. Pra casa da infância perdida tudo ia parar. O ontem era uma coisa impossível. As polaróides que ainda restavam em alguma gaveta eram coisas estranhas. Seus olhos fundos não sabiam desenhar aquelas figuras tropeçadas ao acaso na retina.

Deixou o corpo cair no espaço vazio, flutuar mesmo de uma janela a outra, a Lua lá fora espiava alguma outra janela. Uma pequena portinhola no meio de um paredão concreto de cimento. Cinza escurecido pela luz das estrelas recém despertas. Olhou ali do parapeito para aquela janela solitária. Mas como podia uma janela ali no meio do nada ser mais solitária que a própria solidão que dançava sobre fios de prata no ar da sala?
Palhaços sazonais - quando o espetáculo se torna um saco

“Je me sens seul
Très seul
Je me sens comme le petit prince
mas
Je n’ai pas une rose pour parler avec moi...”

E ele entrou num carrinho apertado e minúsculo e fez farra com outro palhaço. Sua roupa balançava e deixava pender cores por todos os lados. O sorriso pintado de orelha a orelha.

“Sinto-me extremamente só quando a noite bate e não há ninguém para dividir aquele conhaque comigo. Ninguém para me ouvir reclamar de dores no pé ou da falta de algo. Ninguém para pousar os olhos com calma, ninguém para apenas ouvir dentro de um silêncio guardado. E quando essa melancolia me invade resolvo dar um passo contra o meu ego e falar com você. Apenas mais uma dose da sua infinita consciência do mundo real. E quando eu resolvo dar um passo pra trás você me bate na cara usando uma tábua de cadernos com a minha própria caligrafia. Virou marasmo. Virou jogo farejado. Você sabe o início da peça e onde entram os intervalos.”

Saiu silencioso do palco. Atrás de si a carcaça de um espetáculo encenado até a exaustão. As luzes já rarefeitas, tão cansadas do mesmo espaço. Os aplausos surgiram apenas em placas escritas pelo contra-regras. Sentiu a maquiagem borrada e pesada. Deixou o palco meio arrastado. Quando a temporada teria fim? Aquele personagem já havia lhe sugado toda a energia e toda a característica.

“Eu rio mas não sei o motivo, fico indo e vindo sem força de quebrar pedras e abismos no caminho, removo a areia de suas casas, as conchas e as pequenas palavras. Mas dentro de mim tudo continua revolto, envolto em pequenos alvéolos de cimento. Pesa. Pesa. Pesa muito.”

Saiu para a rua revisitado por velhos ventos que sempre tinham o mesmo cheiro. Conhaque, ranço e bolor. Quando aquela temporada iria acabar e o circo mudar de lugar? Era a pergunta que não saia da sua cabeça enquanto descia a rua de volta pra casa.