quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Quando deixo o uniforme de Hitler do lado de fora do armário

Sempre o centro. Sempre a mesma sensação de centro. Anéis no dedo do meio, centralização. As aparências enganam. Ele parecia tão singelo, tão modesto na sua risonha estadia pelos espaços, mas na primeira chance, no primeiro verso de “Miedo” ele já estava vermelho e babando. Estava berrando. Estava ali, agressivo. Animal acuado sem ter um caçador. Uma floresta imaginaria projetada em todas as janelas, portas, rostos e palavras. Apenas ali naquela floresta imaginaria, floresta de Segall, ele se sentia bem, ele tinha a chance de se sentir inteiro, mas ao sair, quando o sol batia no seu rosto, via que nada havia. Que apenas havia gerado algo parecido com uma redoma incompreensível de palavras tortas e pontiagudas. Que havia pessoas suando, correndo e ele estava vociferando e gesticulando no meio de um escritório vazio.
E que ele não se sentia inteiro, ele estava mais vazio. Quando o sangue esfriou, viu que havia um frio mais intenso dentro e fora do seu corpo. Apagaram a luz e relevaram, como se faz com as crianças mimadas. Ele não era tão diferente do maior alvo de suas criticas. Ele só sabia se desculpar, mesmo que fosse pra fazer tudo novamente dentro de cinco minutos. Mesmo que fosse pra cansar todos a sua volta com as mesmas inquietações.
E ele já não sabia como fazer. Como tirar todo esse ódio? Essa insatisfação? Que não era dos outros, era dele. Como explicar, que aqueles dedos eretos e pontiagudos que ele esfregava nas faces alheias, não eram para as faces, para os corações que se magoavam, eram pra ele. Mesmo que ele não soubesse, eram pra ele. Ficou indefinido, sentado na frente de uma janela, vendo os carros passarem, vendo a noite cair. Vendo, pensando. Vendo, pensando. Vendo, pensando. E quanto mais pensava, mais planos tecia, tal uma aranha, para retomar as coisas. Tentava ocupar seu tempo com varias funções, todas importantes, mas não conseguia, tinha medo de decepcionar mais, e de tanto tremer, decepcionava e se irritava e gritava mais uma vez. E se acuava e mordia e rasgava e tolhia e matava. Passou sua vida inteira fazendo isso. Nesse movimento absurdo de desintegração mutua. Todas as pontes, dinamitava-as. Todas as relações, cortava-as. Extirpava qualquer sensação de complacência, doçura...como se testasse o senso dos seres ao seu redor e só quisesse permitir perto, quem pudesse suportar todos os tripúdios, revoltas e insólitas colocações. Só quisesse pessoas- rochedo, para tapear a pessoa-abismo que ele era. O grão de areia que ele havia se tornado. Ele podia ser um mar, um oceano, era o que todos esperavam. Mas ele só conseguia ser um grão de areia.
Respirou fundo. Ele sabia que era assim, já havia refletido tanto sobre tudo isso. Estava cansado. Precisava abrir. Dentro daquela casca pesada que havia construído, não conseguia respirar, não conseguia se mover, seus movimentos ficavam duros e ariscos, assim como suas palavras. Queria abrir aquela bendita porta, mas havia tanto lixo ali, tantas quinquilharias e sobre a porta havia uma tabuleta:
Atire primeiro, pergunte depois.
Passou os dedos sobre ela, sentiu uma dor fina e angustiada. As letras eram cortantes e cortadas no metal. Defensivo, tudo ali era tão defensivo. Tão agressivo. Esse adjetivo vibrava na sua retina, fazia turbilhão na sua cabeça. Se sentia uma besta, literalmente. Não era o que queria, mas como tirar toda aquela tralha dali e abrir aquela porta. Ele puxava, mas era tão pesada, tão resistente. Imaginou todos os obstáculos antes de mover um único músculo. E sentiu-se pequeno. Sentiu-se cansado. Deu dois passos para trás. “ ...O medo é uma casa onde ninguém vai...” ecoando. Mais dois passos para trás. Sentiu-se tão pequeno e mesquinho por fazer promessas tão fugazes. Sentiu-se pequeno por nem ter tentado. Olhou ao redor, talvez devesse chamar alguém para ajudá-lo,mas era tão orgulhoso para essas questões, embora já tivesse feito tanta coisa vergonhosa sem perceber. Embora sua noção de valores já tenha sido deturpada. Se olhasse ao seu redor, poderia perceber que havia se tornado um grão muito pequeno, muito misero.
Deu as costas, saiu da janela, foi até o armário e colocou seu casaco, era pesado, grosso e escuro, mas o colocou a despeito do sol que emanava. Saiu com passos pesados. Pegou na sua coleção de mascaras a mais medonha e saiu para a rua. Em alguns instantes poderia se ouvir sua voz e já imaginar suas contradições ocorrendo. Um filme muito clichê, previsível e sem charme era a sua definição naquele instante. Ele foi ruminando essa metáfora o caminho inteiro. E uma fúria o tomou por inteiro.
- Bom, dia!
- Vai se foder!
Sentiu-se culpado mal havia terminado, a boca ainda estava quente das palavras.
- me desculpe..
- otário.
Uma pessoa a menos no mundo de possibilidades da sua vida. Olhou para o lado, tentou ser altivo,mas suas costas estavam encurvadas. Agora ele entendia porque sem motivo aparente, algumas pessoas se jogavam na frente do trem ou do metrô as seis da tarde ou as onze da noite. Porque existia valium, o porque de trabalhar até a uma da manhã. O porque de tantas coisas. Deixou o casaco sobre um banco de ponto de ônibus, mas cinco minutos depois voltou para buscá-lo.
A sua floresta estava mais escura que nunca, não havia nenhum animal ali, mas se podia ouvir um uivo dolorido. E era tão assustador, havia tanto espaço para ecoar...

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