sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Diálogos invertidos ou quando minhas conversas interiores são mais interessantes que as discussões cinematográficas

- Talvez ela não precise.
- mas como? Como ela pode saber se eu existo se não ouvir minha voz?
- talvez ela não precise...
- ...
- ela não é cega, sabe que você está por perto e por isso mesmo evita...
- mas o que eu fiz pra ela ter tanta raiva?
- quem disse que é raiva?
- eu nunca perguntei, mas ...
- e nem pergunte, apenas dê espaço para que ela circule. Deixe-a livre, o seu maior problema é gostar de pássaros e gaiolas ao mesmo tempo. São dois opostos.
- não entendo
- entende sim, cada letra, cada virgula. Você sabe de todos os porquês. Deixe-a ir.
- mas eu a amo..
- você não sabe, você a deseja, é bem diferente
- mas não paro de pensar nela, no perfume, no som da voz..
- no corpo, sempre no corpo. Você não a ama.
- mas..
- nem mais nem menos. Você gosta e fica obsessivo, mas obsessão não é amor
- então o que é o amor?
- não sei
- como não sabe? Como pode dizer que o que eu sinto não é amor, quando nem você sabe o que ele é?
- eu não sei delineá-lo com palavras como você tanto quer. Eu apenas o sinto. Nem sempre acerto,mas sinto, por alguns instantes ou por dias inteiros.
- isso não é amor!
- amor não é corpo, não somente. Pode imaginá-la ao seu lado? Apenas ao seu lado, sem tocá-la e ainda assim sentir-se bem?
-...
- responda
- nunca pensei..
- então é desejo, uma prévia do que poderia ser o amor se você tivesse calma
- eu tenho
- não, não tem. Você gosta de arrancar asas de passarinhos para cultuá-los numa gaiola bonita. E isso, não é amor.
-chega! Não quero mais essa discussão
- então pare de se martirizar, de tentar tê-la de volta. Você não pode ter aquilo que nunca foi seu.
- foi meu! Foi toda minha!
- na sua cabeça, sim. Com certeza ela foi. Mas resista ao sonho e veja com clareza, ela nunca te prometeu nada, ela nunca te deu nada, além da fugaz palavra, do beijo negligente, ainda que gostoso, ausente. Ela nunca foi sua, entenda de uma vez.
- mas eu não quero esquecer... Ela foi tão boa, ela me fez tão bem
- não esqueça, apenas não diga. Deixe-a ir.
- e se..
- esqueça o se, pense que aconteceu e acabou. Como um pacote de bolachas, uma taça de vinho, é um prazer com tamanho definido, você pode apressar ou demorar-se mais, porém o fim é inevitável. E nem por isso deixa de ser prazeroso.
- eu me sinto muito só
- pare de sentir, vá dar uma volta de bicicleta, ler um livro. Amorteça a sua tristeza. Você tem muito tempo e muito sonho.
- eu não tenho muitas coisas
- você tem coisas até demais. E por isso mesmo não sabe o que fazer.
- eu..
- há uma pilha de coisas a sua espera. Você não se ocupa por que não quer. Não tem amigos porque não quer, não tem as mulheres que deseja por mais tempo, porque é afoito. Mas não fique tão preocupado. Você não precisa resolver todos os seus dilemas em três semanas.
Terminando essa última frase, o homem de casaco marrom, barba branca e chapéu de abas velho dobrou seu jornal milimetricamente. As duas partes estavam simétricas. Levantou-se vagarosamente do banco de pinho escuro, deixando sobre ele sua sombra suave. O fim da tarde se aproximava vagaroso. O laranja do céu encobria as dobras da sua face. Como um origami ele sorria e milhares de linhas se moviam, como num desenho ritmado. Seus olhos eram miúdos, mas pareciam conter todas as histórias e soluções. Era um pedaço do horizonte o azul de seus olhos,havia nele a secular força dos oceanos e os reflexos de luz assemelhavam-se a conchas nesse oceano inevitável. Sentado abaixo de si, estava um jovem de feições cansadas demais para sua pouca idade. Suas preocupações internas o carcomiam, seus cabelos escuros como o petróleo parecia sugar toda a luz para dentro de si, num buraco negro. Seus olhos famintos vislumbravam cada uma daquelas pequeninas linhas e via nelas todas as palavras até agora despejadas sobre seus ouvidos. Tinha a sensação de concha marinha nos ouvidos, com aquela voz vagarosa que destilava as últimas palavras com doçura. Seus ombros estavam um pouco retesados, sua camisa azul escura terminava nas calças jeans rasgadas e no tênis meio sujo das ruas. Nas suas mãos pendia uma reflex. Suas mãos a mantinham aninhada com um pequeno gato sobre seu colo. Viu meio absorto o homem do jornal e da barba se deslocar entre os passantes do parque. Lento. Rítmico. Leve. Como num sonho de Fellini. Olhou para sua câmera e viu nela a impressão daquele rosto. Parecia um novelo de linhas claras emoldurado por chapéu canhestro. Mas dentro daqueles olhos, mesmo ali naquela representação havia um universo de palavras misturadas, ora brutas, ora lapidadas.
Ele caminhava pelo parque em busca de algumas fotos, o dia estava alvo e o calor era intenso. Suava sem precedentes. Crianças, mulheres. Cachorros. Estruturas refletindo a luz da tarde. Suas fotos eram incessantes. Mas também não o satisfaziam. Quem o visse andando pela rua o tomaria por um furioso ou mesmo por um descontente. Sua face tripudiava do riso, e mesmo que tentasse ficava uma vontade de choro, um ricto bobo sobre todas as suas reverberações. Sentou-se num banco cansado. O dia era lindo e blá blá blá. Deixou a máquina pender sobre o regaço, estirou os braços ao redor do banco de pinho escuro, deixou o calor abater-se sobre a face e descamá-la suavemente das preocupações. Colocou o mp3 no ouvido, aquelas canções de “twinemen”. as linhas do baixo pareciam reger as linhas das coisas, até mesmo o vento parecia dançar conforme as linhas da bateria. Tentou suavizar seu rosto.
- porque ainda penso nela?
Seus pensamentos tomavam forma de murmúrio. E os murmúrios em palavras.
- talvez porque você não tenha muita coisa em que pensar ou talvez porque você goste de pensar.
Sentiu uma sombra em seu rosto e assustou-se ao ver uma figura branca, que lhe lembrou muito um novelo de linhas de lã. Olhou com apenas um olho, o outro estava fechado por causa do sol. Eram duas da tarde. Via que uma fenda se movia no meio daquele emaranhado de linhas e ficou alguns instantes pensando como aquilo era possível. Tirou um dos fones do ouvido.
- talvez você queria um pouco de biscoito.
O velho ergueu um saquinho de papel pardo na altura de seu rosto e num leve vai e vem insistiu na gentileza. A contragosto, pegou e agradeceu.
- geralmente são os velhos que falam sozinhos em bancos de praça, ou essa era uma música bem triste
-hein?
- você... (o velho ergueu as mãos aos ouvidos e imitou alguém com fone, balançando a cabeça e fazendo rostos caricatos) estava falando alto assim, mas eu não consegui entender o ritmo da música.
O jovem corou um pouco, se sentia constrangido. Para melhorar o seu dia que já não era bom, ainda tinha que ser zoado por um velho. Fez cara de zanga
- não se zangue. ( o velho sorriu e inclinou o corpo para frente, ajeitando-se no banco) eu também não sei porque gosto de algumas pessoas. É sempre algo estranho e complicado de definir. Olhe aquela mulher. Porque alguém gostaria dela? Será pelo que? Ou porque alguém gostaria de mim ou de você?
- boa pergunta
- pois é meu caro! ( dando um tapa no joelho e sorrindo miudamente entre as linhas amontoadas de seu rosto) ninguém sabe!
- mas eu sei porque gosto...
- sabe?
-sim.
- e ela, supondo que seja ela, sabe?
- sim, eu já disse. Mas ela me evita. Eu tento explicar. Tento ficar perto, fazê-la ouvir minha voz...

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