segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Três cantos ingratos num canto minguado do quarto

Primeiro canto

No quarto 923 alguém gritou

Prive-me logo de todas as sensações. Enfie essa marca na minha testa. A marca do desapego. Estou aqui há muito tempo, essa janela me parece igual, o mesmo tamanho. Estou presa num porta-retratos. Não me peça para sorrir. Ande logo com isso! Mas que diabos, me ouça! Olhe pra mim quando eu falo com você, porque eu sei que pode me ouvir aí do outro lado da porta. Eu sei. Posso sentir o calor do seu corpo transpassando o ferro. Seu cheiro ácido misturado ao metal. Seu corpo de tanto ficar colado a essa porta já deixou nela a vida. Fica em você uma casca apenas, toda a sua ausência e consentimento respiram nessa porta. E eu aqui do outro lado rio. Porque fez por bem em me manter cativa, me vejo cinicamente no direito de mantê-la em afasia. As marcas na minha pele são escuras, pequenos eclipses na derme amarelada e doente. Vejo a sua imagem sobre meus ombros. Ela ainda é tão pálida e alvoroçada. Hasteia seu coração numa praça, a sua carcaça já está cheia de formigas. Colada a porta. Posso vê-las jantando aqui. Em banquetes reais. Dionisíacos. Seus pedacinhos docemente triturados por minúsculas serras.
Atrás dessa porta que você construiu para não me ver e mesmo assim me tocar. Dia após dia corroendo os vãos e frinchas da minha memória eu lhe provoquei com minhas dobras, meus papéis, minhas pálpebras caídas e mortas sobre lençóis amanhecidos de um suor sem sonhos. Dia após dia eu lhe dei minhas vértebras sem reclamar. Até no claustro escuro que me colocou vi suas letras. Seu rosto imperfeito na cauda dos ratos. Seu pêlo no mofo do pão que docemente me passou por anos a fio por debaixo da porta de ferro que você colou ao meu corpo e ao seu pra não me ver e ainda assim me tocar. Eu lhe toquei com a ponta de meus dedos sujos. O seu reboco caiu diante dos meus suspiros. Mulher, você foi tola e histérica. E teve a coragem de me adiar uma visita. Você não olhou em meus olhos e sentiu meus vermes escorrendo, como gotas grossas de saliva sobre o assoalho. Você não quis ver meus dedos grossos perdendo a carne, você não quis ver minha voz perdendo a cor, ganhando ares de tijolo. Rouco. Pouco. Você não quis ver. Minhas cordas ficando velhas, minhas pernas ganhando cobras. Você se colou a porta, vértebra à trinco, nódoa à ricto, você desejou desaparecer junto com a loucura das minhas manhãs. Mulher, você me deixa num porta-retratos empoeirado, dentro de uma caixa de sapatos e me suspira em silêncio, eu sei. No fundo deseja minha carne entre seus dentes, me fazer de presa e cadáver nas suas noites de luto mórbido. Você almeja o que não posso dar.
Prive-me logo da merda dos sentidos! Ouça meus gritos ressoando como sinos! Que inferno. Deixe-me aqui ou retire meus restos em seus braços. Deixe-me morta ou me realce os traços. Nós duas assim morremos aos poucos, você colada à uma porta e eu do outro lado dela atada à camisas de força, à sorrisos falsos. Enfie seus dedos pela minha epiderme, o meu calor ainda é capaz de aquecer seu coração. Essa pedra que aprecia tanto. Minha pistola ainda pode engatilhar um tiro duplo em nossas testas em uníssono. Porta à porta. Rasteje entre minhas roupas como uma lufada de ar. Você me prende entre loucos e recusa-se a me soltar. Dança comigo em silêncio em noites de frio. Meu corpo se recobre de pústulas, sua puta. Sua boca me causa náuseas. E mesmo assim sorri em risos largos e rasgados. Quem é a dona dessa loucura que se enterra?
Você me deixa ao relento. Me permite cinzento, já não sou meu dono. Eis que me recordo ser outro em sono. Sua boca nojenta vocifera trajetos que minhas pernas curtas não podem percorrer. Seu sadismo não se resume a arrancar antenas de barata com palitos de dente. Eu odeio a sua carne rançosa. Me deleita ouvi-la gritar do outro lado dessa cruel porta meu nome. Não atenderei. Definhe com suas migalhas afundadas nas narinas, retinas e alvéolos. Quando seu corpo terminar de enferrujar, terei enfiado o pé nessa porta, transpassado sua boca torta e dado asas aos meus dois lados. Você me amou pela metade, é justo que eu te cuspa apenas uma parte.
Seria melhor se nunca tivesse me inundado de sedativos, nem apertado meus braços com amarras sublinhadas. Destaque ao meu amor, porque eu te amo, do verme a carcaça. E não se preocupe, cumprirei todas as honrarias com a tua cona e tuas pernas e teus seios e tuas verdades imperfeitas tuas palavras salgadas, hei de depositá-las todas no manicômio estadual. Muito apropriado, envergar tua coluna num beijo e presenteá-la com as chaves da minha cela, da minha sala pessoal. Bem-vinda, um gole de vinho? Só cuidado com os verminhos, me desculpe, a higiene do lugar é precária. Caio numa risada fora de mim. Você não se lembra de ter entrado, apenas tenta sair,mas deixar suas unhas na porta, apenas causará manchas difíceis de limpar. Sente-se, comporte-se, talvez assim eu a deixe ficar.

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