segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Vinte e quatro copos de conhaque ou vinte e três e meio?

Olho para a pilha de copos de vidro enfileirados sobre o balcão. Baixos, longos, finos, grossos, sujos, limpos, nossos. Meu e meu. Nosso. Restos brilhantes e líquidos se despedem no ar. Evaporam doces com a lentidão de um beijo mordido e sangrado. Com a mesma exatidão de uma mão sobre o dorso. Delicado. O ar passa e vibra em diferentes tons. Barítonos. Sopranos. Contrabaixos, embaixo, assalto de palavras populares na borda do soluço. Desculpe. Soluço. Ali na beira fina daquele copo vejo saltar um último fio de saliva minha para a eternidade. Escorrendo gracioso como a chuva por uma grade. Vejo-o descendo, como uma carícia pelo copo até tocar a superfície tabaco e fria do balcão. Olhar atento para a sexualidade das coisas. Suspiro. Desvio. A atenção para a porta que se abre e para o ninguém que entra com passos lentos.
Sensível movimento na ponta dos dedos, inverto a ordem dos copos pra praticar o desapego, mas eles existem assim dessa forma, não adianta colocar em desordem. O tempo passa e os copos foram se acumulando lado a lado. Acho que bebi um pouco demais ou beberam por mim? Perdi um pouco a conta já não sei se são vinte e quatro ou doze ou trinta. A somatório dos conteúdos é pequena,quase um feto; a das formas é um pouco melhor,um pequeno dejeto; a das memórias alinha-se à um Baóba. Trajetória estranha até mesmo para as minhas coisas. História incerta sem previsão de final. Nem final feliz. Os copos alinhados de bebidas diferentes, experimentados em horas descrentes dançam colados. Festejam a vinda de mais um copo, este, que ainda cheio se posta meio de lado, assim alheio, meio controverso, mas no fundo igual a todos os outros copos sobre a mesa. Olho-o. Sua cor parece suja. Sua beira oferece cortes. Seu vidro é disforme. Um copo feio, não há outro? O ninguém que entrou de passos lentos meneia a cabeça num não. Posta o copo a minha frente e debruça-se para observar. Seria o último? Ou mais uma infinidade de outros viriam se encostar ali? Em verdade, eu desejaria apenas mais seis. Apenas seis. Mas quem há de controlar o vício? Ou o acaso? Se a prosa é boa, prossegue-se. Se é ruim, a gente ajeita. Se for muito dramática, puxamos um riso do bolso. Se for angústia pura, enfiamos a pistola no rosto. Eu só não pulo da janela, porque preciso pagar a conta. Fica chato fugir do bar sem pagar. Ficar em dívida. As vezes gostaria, até já ergui um pouco o corpo do banco, mas quando vejo outros correrem afoitos, deixando as carteiras, blusas e afins pelo caminho, vejo que não vale muito a pena. A porta dos fundos desemboca num beco fétido. Ainda prefiro o charme francês de Godard, a porta da frente e seus ares de néon. Ainda prefiro um copo a mais. Põe na conta e enche mais um.
Saio do bar e vejo meu nome numa lista, a minha conta tem um valor que não vejo. Quando for a hora de pagar, saco o cartão de débito e pronto. Mas acho que vai demorar, sempre me disseram, que quanto mais você quer uma coisa, mais ela teima em não acontecer. É provável. Chove. Essa chuva me persegue desde meu primeiro gemido no mundo. Faz parte de mim, é quase uma extensão da minha’lma turva. Fecho um pouco o casaco marrom de aviador. No bolso minha Lua dormita e meu Drummond se encosta. O ar da noite é gelado e me estapeia de leve. Sempre pronto a brincar. A sexualidade das coisas inspira o ar. Deixo que me toque com capricho. Dobro a esquina e ando com calma entrando num mar de guarda-chuvas que não é de amor, nunca são os guarda-chuvas de Godard nem os de Truffaut.

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