Pág. 45 do diário de um ogro
O tédio o havia corroído até as pernas. O osso fundo da coxa chiava. A chuva de janeiro caia incansável, dando seus murros sobre os telhados e os frágeis guarda- chuvas de listras. E dentro da sua cabeça, encoberta por um cobertor, apenas um pensamento: será que foi isso? Revirava-se sem sono na cama já marcada de suor. As paredes cheias de marcas de dedos. Uma inquietude chiava dentro de seus ossos magros. Nada até o momento o havia feito notar. Ninguém o havia acertado sem querer com tanta destreza o queixo. Ele sempre foi duro e áspero, nem um pouco sutil em suas colocações, basicamente uma máquina de demolição sem muito freio. Era só abrir a boca e pronto. Se não era isso, vinha-lhe o silêncio incômodo de quem nada tem ou nada quer dizer. Mas aquela mulher que ele amava tanto, o havia chocado um pouco. Será que foi isso? Que todas as suas pretensas qualidades ficavam soterradas diante do olhar dela devido a uma rabugice dele? Será que foi isso? Ela nunca havia dito nada. E ele ficou esse tempo todo achando que um OVNI havia abduzido seu coração ou que ela simplesmente desfazia dele pelo simples fato de ele ainda amá-la. Os ossos do pulso estralavam num desconforto abominável. Havia algo dentro de si que queria gritar. Ai ele lembrou de todas as vezes que estourou por nada, por um lápis, por uma palavra, por todas as vezes que foi chato, causando um atrito sem razão. Das vezes que impediu que ela demonstrasse seu carinho por chatice, das vezes que foi covarde. Vieram a sua cabeça milhares de ações estúpidas. Ele levantou da cama com ar doente. Ficou olhando ao seu redor e uma vontade absurda de esmurrar algo lhe veio aos braços. Queria dizer que era diferente agora, mas ela sabia que não. Ele ainda era um chato de galocha, um velho de trezentos e setenta e oito anos num corpo de vinte e cinco. E desejou que um raio caísse sobre sua cama. Que houvesse uma doença terminal incubada em seu corpo. Mas era pra variar dramático demais. Ele não havia mudado em três anos. Como agora faria tudo diferente em um ano só? Em um mês? Em um dia? Os ossos rangiam chatos. Até seus ossos eram chatos. E se irritou. Desejou explodir a casa. O tédio deu lugar a uma inquietação amarga. E o será já tomava caráter de evidência. Qualquer um dos outros amores dela com certeza o superariam e muito, pelo simples fato de que não eram amargos como um pedaço de carvalho embebido em pinga. Ele podia ser o mais lírico, o mais sonhador, o mais criativo, mas seria sempre o mala que estaria rechaçando as coisas que não pertencessem ao seu mundinho. Seria sempre um espinho na palma suave daquela mão. E pra sempre teve certeza que ele seria a única pessoa no mundo que ela jamais amaria.
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