segunda-feira, 13 de julho de 2009

Quem sabe amanhã?

Pedaços de papel voando pela janela de um apartamento. Fotos. Letras. Coisas intactas. Coisas inteiras. Caindo sobre os transeuntes como chuva, pesada, até um pouco cortante. Nacos de olhos, de frases, de poeira remexida. Um chão recoberto não de estrelas, mas de pedaços antigos de memória.

Jogou tudo que pertencia ao ontem fora. Todas as quinquilharias que pesavam sobre os seus móveis. Porta retratos, livros amarfanhados, pijamas velhos e suados. Tudo pertencente ao ontem passou pela tira da tesoura. Pelo azulejo português das unhas. Deixou apenas o indispensável. A camiseta do Clash, os CDs do Portishead e os Livros de Neruda. Ao resto, apenas o ar como resposta. Remexeu nas gavetas em busca de alguma coisa que ardesse. Achou um garrafa de conhaque. Fazia tempo que não se inundava. Passou os dedos pela beirada de um corpo de vidro trabalhado. Despejou a dose e sentiu o cheiro inebriar seus pensamentos.

Pegou uma das fotos rasgadas no chão. Não lhe dizia nada. Era um pedaço de rosto retalhado, como num filme de terror tipo B. Ainda curioso apanhou uma das folhas de papel amarfanhadas. Uma letra delicada, mas às vezes caricata, agressiva. Uma prosa? Será? Não tinha nada pra fazer. As pessoas passavam relutantes. Empurravam. Erguiam seus relógios dos pulsos indignadas. Como alguém poderia ficar catando pedaços de papel em pleno meio dia?

Desdobrou ainda um passo. Braços soltos pelo apartamento semi nu. Ouvia música leve e solta como um pássaro que tem a gaiola arregaçada. Respira. Ri.

Sentado no meio da calçada montando aqueles restos febris de palavras. A plena curiosidade de chafurdar na mente de um estranho? Ou de uma estranha? Estranha. A letra era coreografada demais para pertencer a um homem. Ordenava frases e ordens de paixão a medida que a caligrafia saltava ou ressentia. Desmentiu os relógios na passagem do tempo. Alongou-se em curva sobre o asfalto sedento de algo que não era seu.

Sentada numa poltrona verde antiga meio gasta. Por mais que se ressentisse, tinha prazer no que era velho. Gostava do cheiro do mofo. Era afeita ao sono que este lhe causava. Balançava os pés. O celular desligado. O telefone retirado do gancho. Somente a música preenchendo a lacuna que a noite abria. Pequenas estrelas corriam o céu estiradas de suas camas. Resolveu dar um passeio. Tomou um banho. “Magenta” tocando enquanto as gotas caiam sobre seu corpo. Morno. Enfiou-se no seu jeans favorito. Jaqueta preta e um cachecol. Ventava um pouco. Não fechou a janela, que o ar entrasse e retirasse o que sobrou da poeira dos seus pensamentos. Desceu as escadas. Um pouco de exercício para desgrudar o conhaque da língua. Na rua, abaixo da sua janela um imenso mosaico remontado das suas emoções perdidas. Um estranho jogado sobre elas em contemplação. Ela deveria se assustar. Mas se limitou a corrigir a última peça do poema. Sorriu.

Ela simplesmente sorriu. Deixou os passos ainda frescos e quentes pelo asfalto. Eu a conhecia mais que qualquer outra pessoa. Olhou para trás sem parar o passo. Segui o recado. Numa cafeteria próxima tínhamos ambos muito assunto. Por mais cinco horas e seriamos estranhos novamente.

O lixeiro passa com a sua vassoura, puto da vida por aquele lixo espalhado. Não viu a forma, o enredo, o acaso. Apenas o lixo das palavras em pedaços rasgados de papel. A falta do que fazer das pessoas, pensava ele. Deve ser um daqueles artistas plásticos moderninhos. Varreu tudo para dentro da pá e depositou sem importância dentro do carrinho de lixo.

A noite corria sem sustos. Tudo imprevisível, mas ainda assim dono de uma calma quase irreal.

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