quinta-feira, 23 de abril de 2009

Hora do almoço

A rua ardeu num desastre. O desastre rosnou e mostrou o RG. A policia evitou fazer denúncia. E a denúncia assim calou-se na boca de um mendigo que desdentado dormia no canto da rua que ardia num desastre não explicado como um automóvel que corria com coração acelerado.
Do outro lado da rua correndo contra um relógio invisível um pensamento desastroso se chocava contra um par de olhos castanhos claros e se perdia num presságio talvez infeliz. E ali no meio da rua (dançando na chuva sem chuva) dois pares de olhos se cruzaram na incerteza de um segundo concomitante. E se perderam na leveza do mesmo segundo porque um mendigo cheirando a merda parou no meio dos dois, desviando-os e acertando-os com o choque do desastre do outro lado da rua. Que consistia num evangélico berrando em altos brados o fim do mundo, escrevendo nas pilastras do viaduto os mandamentos de uma vida perfeita que jamais existirá sob aqueles preceitos. O desastre consistia no mendigo que fotografava os passantes com seu celular Nokia sem bateria, sem vidro, sem chip. Na mulher que atravessava a avenida correndo com duas crianças enganchadas no corpo e uma terceira no ventre. No pensamento desastroso que se destroça sem espaço entre os relógios. O desastre mostrou RG na batida policial mas não adiantava levar preso. Ele era sorridente e tinha pistolão. Tinha tio rico que era deputado e estudava jornalismo na PUC. Tinha carro do ano e duas garotas desajeitadas e burras e bonitas no banco de trás e uma garrafa de whisky gringo. O desastre tinha dentes amarelos e se calcava na palavra inevitável.

A rua ficou pequena e ninguém entendeu nada. O que era uma batida, um mendigo cagado, três corpos estirados, um velho pregando palavras no ar, um olhar que evitou se entrelaçar, o que era tudo isso comparado ao desastre maior do tempo que corrói as bocas antes mesmo das rugas, que destrói ou ergue as pilastras da memória antes mesmo que se queira esquecer. O que são esses inevitáveis acontecimentos no reto da cidade se comparados aos outros milhões de assuntos corriqueiros e tão menores mas que aos olhos dos umbigos se tornam grandes e esperançosos? Afinal de contas o que é viver numa cidade grande senão adquirir uma ignorância compatível ao tamanho dela?

A rua ardeu num desastre, se indignou, tremulou até a última onda de asfalto,fez voz, fez calor num movimento de corpo, mas no instante seguinte saiu de quadro, se lembrou que era hora do almoço.

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