terça-feira, 29 de junho de 2010

Das manhãs contidas num copo

Perdeu o olhar no horizonte. Imaginou feras metálicas entre os prédios. Um ambiente volúvel aos seus desejos, apenas aos mais íntimos. Apenas imaginou. Pendeu sobre o carpete um gole de conhaque. Preso na imaginação de algo incógnito. Queria perder seu coração numa pista de dança. Encontrava-se suscetível à intervenções de músicas. Seus desejos mudavam de lugar. De momento. De nome. De forma. Comum. Mas hoje acordou com aquele frio incômodo na barriga. Como se dentro de si houvesse um pequeno universo em expansão. Como se seu coração houvesse se tornado pequeno pra todas as coisas que caiam das gavetas. As sensações tardias. Os desejos ainda irrefreáveis. Pessoas que foram romances e que agora apenas existiam na agenda de telefone. Que ela nem se preocupa em ligar. Ruas que antes partilhavam do seu cotidiano e que agora não lembra o nome. Como era mesmo? O nome daquela bebida que ela gostava tanto? Dois anos tornam as circunstâncias mais frias. Parece que nada mudou. As roupas continuam no guarda roupa. As mesmas roupas. Os mesmos CDs empoeirados. O jeito de guardar as meias. O jeito de falar. De segurar a xícara de café. Mas porque olhando parece tão diferente? Tão distante? Porque pensar sem dramas, sem cenografias, parece tão pouco? E todo o estardalhaço parece fingido? Parece mais calmo. Parece. Parecer é um verbo engraçado. Perdeu no horizonte o fio das idéias. Pensava em tantas coisas que não articulava o pensamento numa via de mão única. Compraria um gravador. Talvez assim enxotar as idéias ainda quentes da cabeça pela boca ainda úmida. Não sabia. Parecia mais triste. Mas parecia mais leve. Parecia mais extenso. Mais calmo.
Saiu da janela. Deixou o rádio ligado. Olhando ao redor fez um apanhado do seu passado. Sem mexer um dedo, jogou um pouco mais fora. Deixou-se mais leve sobre o sofá. Pensou no poema de Drummond que sempre esteve em sua carteira. Dentro da sua agenda uma foto. Um poema. Papéis anotados ao acaso de pessoas que ela esqueceu no meio do caminho. Tantas coisas e pessoas no meio do caminho. Afinal o que define alguém especial? O que é especial? O que é essencial? Pensou no maior número de pessoas que estiveram em sua vida, velhos amigos, amantes,mestres, conhecidos ocasionais, o que definia essas pessoas como importantes ou não pra si? Depende tanto do momento. Uma série de pessoas “indispensáveis” ela nem lembrava o nome. Perdeu na memória os dias em que tudo era exaltado, marcado por proezas tolas. Por chances que existiam dentro da cabeça. Por paixões flácidas. E pensando nas suas últimas paixões ficou contente. Eram ao menos pessoas interessantes cada uma ao seu modo. Inteligentes. Belas? Aos seus olhos sim. Aos dos outros, pouco importa. Foi feliz. Teve dias ruins. Teve horas amargas. Teve horas ébrias. E algumas de ridícula sobriedade. Mas ainda assim são coisas que acontecem quando se está vivo. Deixou o rádio mais alto. Tentou encobrir seus pensamentos. Deixá-los só seus mais uma vez. Engarrafá-los como nuvens (como fazia, ou achava que fazia quando era criança). Deixou o copo sobre a mesa. Ensaiou alguns passos na sala. Deixou a música encontrar um lugar no seu corpo. Os pensamentos encontrarem o seu desvio natural. Alguém lhe disse que era necessário respeitar os silêncios da alma. Deixou que se ajeitassem as palavras do modo mais aprazível. Apenas retirou-as do seu corpo. Deixando leve. O copo sobre a mesa recebeu um filete de sol. Ficou um brilho suave sobre a mesa, reflexo cabisbaixo de uma coisa indefinida.

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