segunda-feira, 11 de maio de 2009

Ensaio para uma loucura previamente imaginada
- o paradeiro de Sophia -
Parte I

Dizem que a raiva não fica bem, mas ela tem bom caimento no meu corpo. Quando o sangue escorre pelo rosto e nada além das costelas estralam e acima da cabeça nada além de uma dor surda e pés que visam a sua cabeça como tapete. É, dizem que a raiva não me caí bem, mas quem diz isso nunca teve motivos pra endurecer.
Eu gostaria de esquecer, mas todo dia pela manhã, sinto todas as dores do primeiro instante, como se ainda sentisse aquele corpo sobre o meu. Nocaute. Procurei grupos de apoio, mas só me revesti de uma agonia maior ainda, por não saber único o meu caso. Por saber que tantas e tantas pessoas foram alvos de uma ignorância tão viva. Nocaute. Toco meu braço e ainda sinto o viscoso do sangue que não mais escorre, a mão sobre a mandíbula sente o estralo que não mais se ouve, além das manhãs de frio. Nocaute. No lugar do rasgo um desenho, imagem vermelha pra recordar do feito. Do grande feito de saída da gaiola.
Sinto todo o peso dessa dor acumulada no coração, como cascas e mais cascas uma após a outra cada vez mais densa mais encrespada mais dura mais ácida. Sinto tudo isso como quem sente o ferro quente na gengiva, o fio da gilete passando na sola dos pés. Mas não, não é a senilidade, nem a demência. É a ignorância que estava na gaiola e bateu asas. Bateu balas. Bateu duro e nocaute. Direto no queixo. Na quina da cozinha. Dente voando sem asas no azulejo sujo. Esporro sanguíneo tingindo o entardecer. Mão de ferro corroendo de ferrugem a cartilagem do corpo. Dor aguda ensurdecida ainda na memória antes do apagão. Mesa de hospital contaminada de sinto muito. Cadeira de doutor contaminada de escuro. Sala escura sem voz. Dizem que a raiva não me caí bem, que fica tenso sem riso o rosto, que sem apetite de alegria fica frio o rosto, mas quem me diz isso, não tem na boca o gosto que eu relembro toda manhã.

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