segunda-feira, 4 de maio de 2009

Quando o chuveiro desencadeia um curto circuito

Barril de pólvora prestes a explodir, coração eclodindo cotidianamente numa pústula nova com acento grave na raiva. Cenas e mais cenas protagonizadas pelas mesmas duas personagens. Um irreparável erro da genética e de logística a permanência dos dois na mesma família. Qualquer acento na voz, deslize de palavra desencadeava longos quinze minutos de discussão, com munição farta para dois sitcons e duas guerras civis. Uma epidemia de mal humor e esclerose se espalhava pela casa. O temperamento arredio de um, o bloco inerte de cimento do outro. Duas peças do mesmo acervo, que se quebrariam fatalmente em algum momento. Bastava um tropeço maior. Um grão a mais na pistola já tão sobrecarregada. A angústia, a descrença, a vergonha, a inexatidão permeavam os semblantes que corrigiam a rota no momento do impacto da retina. Vertiam ácido pelos dentes. E nem mesmo se alargavam mais em falsos “ bom dia”. Corpos espectrais crendo-se ausentes, mas no abalo do esbarro tremiam os dentes, apenas num ranger de porta, via-se o olho ardido e questionador, do outro lado apenas o silêncio desinteressado e contido em seu asco.

- Vai lá ver se já saiu do banho.
- se está tão interessado vai ver você
- vou mesmo, sou eu que pago a porra dessa conta ( na verdade não, não era ele que pagava e sim sua mulher)

Subiu até o penúltimo degrau da escada. A porta do banheiro ainda estava fechada. O vulto corpóreo movendo-se com alguns ruídos.

Dentro do banheiro, cheio de dores nas costas, má postura talvez, semi curvado como um viaduto. Ao desligar o chuveiro, os ouvidos captam o diálogo que ocorre na sala. Seu sobrolho se franze. Arruma-se e faz questão na demora. A toalha roça quase na medida do osso. Arranca a pele velha e deixa a nova vermelha. Desce as escadas.

- o chuveiro não estava esse tempo todo ligado.
- vai saber, teve uma vez que pareceu ter morrido lá dentro...
- vai ver que morri mesmo
- ah que bom
- se tá tão interessado porque não vai lá tirar o cadáver então?
- como é?
- além de estúpido, é surdo também?
- parem vocês dois!

Silêncio na sala.

Cada um vira-se para o seu lado. Um vai comer o outro resmungando ver o programa do Raul Gil na TV.

Nenhum comentário:

Postar um comentário